CAPÍTULO UM - VIA DE MÃO DUPLA

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          Havia uma rara coleção de facas de combate minuciosamente polidas e precisamente afiadas guardadas em uma pequena maleta dentro de um baú velho nos pés da cama de Miguel. As lâminas foram forjadas para serem usadas exclusivamente por ele. Letais e capazes de perfurar até a alma de um impuro, arrancar-lhe sua energia vital, absorver e dissolver a essência adiáfana de cada um deles.

Não tinham valor material algum, mas desde que as ganhara de seu avô, quando completou quinze anos, ele as guardava como se fossem um amuleto de proteção.

Eram seus bens mais preciosos.

Os olhos oblíquos recaíram no baú quando outro chute foi deferido em sua costela, fazendo-o se contorcer no chão, dentes serrados, pernas encolhidas e braços protegendo a própria cabeça. De repente aquilo se tornara um ciclo vicioso do qual ele não podia escapar, sentia o veneno entrando gradativamente e, depois, só restava o gosto amargo na boca para lembrá-lo quem ele era.

Miguel grunhiu quando seu corpo foi erguido do chão por duas mãos fortes que seguraram as lapelas de sua jaqueta sem nenhuma gentileza, havia sangue escorrendo de seu nariz e alguns fios de cabelo molhados de suor grudando na testa — embora tenha nascido com os cabelos pretos como a penugem de um corvo, ás vezes, eles mudavam misteriosamente para um branco inocente como neve (como agora).

Alguns diziam que era por causa da maldição de uma lenda orostiána antiga, uma marca conseqüente do erro de seus pais para lembrá-lo, onde quer que ele fosse, de onde ele tinha vindo.

Miguel sentiu o mundo oscilar ao seu redor, sentiu como se as paredes daquele quarto escuro ficassem cada vez mais estreitas, roubando todo ar de seus pulmões. Ele queria se defender, mas não conseguia, não podia sequer tentar, não quando enxergava a si mesmo toda vez que olhava nos olhos do agressor.

— O que eu deveria fazer com você agora? — a voz de Nattan Ayutthaya era profunda e sempre tinha a medida certa de autoridade e desprezo. — Não sobreviveria nem dois minutos sozinho.

Sobrevivemos. É isso o que fazemos, mesmo que tenhamos de deixar um rastro de sangue no caminho. Aquelas palavras se tornaram mais afiadas e penetrantes do que a lâmina de suas facas, e cada vez que ouvia o pai repeti-las, Miguel se tornava tão cruel quanto ele.

Ser como ele e fazer parte do que ele fazia, exigia um nível considerável de apatia. Los Ónix eram vistos pelos impuros como uma prole de assassinos e sanguinários, eles eram uma ordem de caçadores divididos em quatro clanes: Tierra, a sensação. Agua, o sentimento. Aire, o pensamento. E Fuego, a intuição.

Alguns, para diminuir o peso de suas consciências manchadas, mentiam para si mesmos que o que faziam era algo digno, alimentando seus egos infláveis na tentativa de se sentirem menos desumanos. Mas, para Miguel, eles eram o que eram, não heróis, não mocinhos, mas o limite da via de mão dupla que aquela cidade se tornara.

— Perdão — Miguel testou a palavra pela primeira vez desde que teve chance de abrir a boca, ela saiu amarga junto ao gosto metálico na língua. — Perdão, pai... Senhor. Eso no volverá a pasar (Não vai se repetir).

— Você é patético — soltou as lapelas da jaqueta azul. Miguel caiu no chão, dobrou os joelhos e encostou as costas contra a madeira fria do baú.

— Alguma coisa aconteceu... Achei que fosse um recém transformado, mas era forte demais — ergueu o olhar e explicou em um ruído ofegante, com dificuldade para respirar. — Tal vez no era um inato.

— Não faz diferença, eles são todos desprezíveis — o homem vociferou. — Você vai trazer ele pra mim, entendeu? — Apoiou uma das mãos na cintura, os nós dos dedos avermelhados.

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