CAPÍTULO DOIS - RAPOSA

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            Quando Ember acordou, puxou uma quantidade considerável de ar e sentiu um cheiro característico de mofo e sangue. Entorpecida e meio zonza, ela piscou lentamente, a visão turva, se inclinou para frente e sentiu cordas apertadas em volta de seus tornozelos, braços e pulsos, mantendo-a presa a uma cadeira de metal enferrujado.

Ela pendeu a cabeça para trás, sentindo um gosto amargo na boca, tentou engolir a própria saliva para amenizar a secura em sua garganta. Seus olhos demoraram a se acostumar com a pouca iluminação do lugar, era úmido, frio e tinha apenas uma porta de madeira velha a alguns metros de distância a sua direita.

Á sua frente, ela percebeu uma garota de costas, ela vestia um moletom velho, com furos nas mangas, desproporcional para seu corpo, os cabelos castanhos presos em um rabo-de-cavalo. Ela ficava na ponta dos pés e depois na ponta dos calcanhares, como uma cadeira de balanço.

— Quem é você? — Ember ousou perguntar e odiou a forma como sua voz soou: baixa, trêmula e frágil.

A garota não respondeu.

Ember começou a relar os pulsos um no outro, tentando esfregar as mãos para gerar raposa flamejante — mesmo que uma pequena quantidade —, apenas para queimar as cordas e conseguir fugir. Mas tudo que conseguiu foi uma dor intensa penetrando sua pele e ossos, ela grunhiu e cerrou os dentes, afastando os dedos e se debatendo contra a cadeira de metal.

Aquilo nunca tinha acontecido antes, era como se seu corpo estivesse queimando, e não da forma que ela queria.

Sua única estratégia é ser mais inteligente. Era o que Vegas diria em uma situação como essa, mas Ember não podia pensar nele, porque até mesmo cogitar a idéia de usar qualquer um dos métodos dele era uma fraqueza que ela não podia se permitir ter. Não depois de ter enfrentado a morte para fugir dele.

— Você vai morrer se fugir — a voz veio da garota estranha, soando fria e sem emoção. — Morirás como murieron tus padres. (Vai morrer como seus pais morreram)

Ember paralisou, sentiu como se uma névoa a separasse do restante do mundo, o ambiente muito claro, pequenas fagulhas se formando ao redor de seu corpo, como brasas no escuro. As palavras entaladas em sua garganta, o ar se esvaindo. A garota a olhou por cima dos ombros, um sorriso desumano se formando no canto da boca, a mais profunda escuridão dentro de seus olhos. Era ela mesma, mais sombria e mais triste — se é que aquilo era possível — mas ainda era seu rosto estampado ali, com enormes bolas de fogo no lugar dos olhos. Era como olhar para um espelho que refletia seu pior lado.

Então o ar voltou para os seus pulmões e ela acordou numa cama com lençóis macios. Tossiu, inclinando metade do corpo para fora da cama, apoiando uma das mãos na mesa de cabeceira, seu rosto pingando suor.

— Vejo que sofre até nos seus sonhos — uma voz grave o bastante para arrepiar os pelos do corpo e causar um frio na espinha ecoou no quarto.

Ember caiu no chão, levando junto os lençóis. Ela firmou as mãos no piso e se arrastou para longe da voz vindo de um dos cantos escuros até que suas costas batessem contra a parede pintada de amarelo claro. Sua cabeça não estava funcionando bem o suficiente para que seu cérebro mandasse uma mensagem para suas pernas. Ela apenas ficou parada, encarando um par de olhos flamejantes no escuro, duas bolas de fogo iguais as que vira antes.

O som de alguma coisa tão dura quanto um pedaço de madeira batia contra o chão à medida que aquela voz saia da escuridão, ganhando uma forma, um rosto. Era um homem alto, os olhos estavam castanhos agora, vestia preto da cabeça aos pés e usava um sobretudo que ia até os joelhos. Ele era elegante demais para morar do lado oeste, o que a fez ter certeza — além dos lençóis de percal e das paredes sem infiltrações — que estava do outro lado do Portón.

— Levante-se, criança — ele pediu, apoiando as duas mãos na bengala à frente do corpo.

Ember se encolheu, por algum motivo idiota ela recuou, como uma menininha assustada, a menininha que ela havia deixado de ser desde que descobriu que contos de fadas só eram possíveis do lado leste.

No te lastimaré. (Eu não vou te machucar)

Mas como ela poderia acreditar nas palavras de alguém do lado leste? Desde que chegou à Orostián del Sur, ela fora ensinada a não confiar em Puros, e embora tivesse plena certeza de que o homem em sua frente não era humano, ele ainda era um desconhecido que a nocauteou na cabeça e a seqüestrou para fazer sabe-se lá o quê.

— O que você quer comigo? — ela perguntou, tentando deixar a voz firme.

— Ember Suwan, 23 anos, nasceu em Pattaya, na Tailândia... — ele para por uns instantes e abre um sorriso pequeno — e também é rapper. — Continua.

— Como... — as palavras não saiam. Ou talvez ela só não soubesse o que dizer.

— Você quase matou um garoto na escola, não foi? — Ele declarou. — Os médicos te diagnosticaram com transtorno de personalidade antissocial, mas nós dois sabemos a verdade. Aquela raposa de calda brilhante, ela sussurrava para você, perseguia o seu sono, te induzia a fazer coisas que você não queria...

Ember paralisou por um tempo, sua mente voltando anos atrás, para o momento que ela mais lutou para esquecer. Gritos, fogo, fumaça, caos... Seus olhos cheios de lágrimas que lutavam para cair, seu corpo inteiro queimando junto com as memórias daquela noite.

— Interessante — ele disse mais para si mesmo do que para ela, a arrancando de seu devaneio. — Nunca conheci uma kitsune com tendências autodestrutivas. Todas queriam destruir algo, objetos, lugares, pessoas... Mas nunca a si mesmas. Estou cada vez mais fascinado por você, Ember, é uma kitsune rebelde.

Ela piscou algumas vezes, ainda não havia decidido que sentimento deveria ter sobre o fato de aquele homem sentado à sua frente, usando roupas que ela não conseguiria comprar nem mesmo se fizesse um ano de hora extra na Sépia, saber tanto sobre ela. Mas escondeu qualquer resquício de medo aparente e sorriu com escárnio.

— Corta essa — ela desdenhou. — Qualquer um com acesso ao meu histórico escolar e ficha psicológica saberia disso. A questão é: por que se deu ao trabalho de investigar minha vida?

O homem riu, a encarando nos olhos, como se estivesse olhando para o seu próprio reflexo.

— Eu e sua mãe éramos amigos. Nós trabalhávamos juntos, mas algo aconteceu...

— Não quero cortar o seu barato, khun (senhor), mas não vai chegar até a minha mãe usando a mim... A menos que você faça contato com os mortos, mas você não tem cara de quem sabe como conduzir uma sessão espírita.

— Eu quero que trabalhe para mim — ele foi direto, seguro e surpreendente.

Pelo que ela conhecia do lado leste, suas opções eram: aceitar qualquer que fosse o trabalho ou morrer ali mesmo sem direito a um velório decente, seu corpo acabaria apodrecendo em alguma vala e ela seria esquecida. Não parecia uma decisão justa, mas para quem nascia com sangue adiáfano, justiça não significava muito.

 Não parecia uma decisão justa, mas para quem nascia com sangue adiáfano, justiça não significava muito

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⏰ Última atualização: Sep 17, 2023 ⏰

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