𝐍𝐨𝐬 𝐂𝐨𝐧𝐟𝐢𝐧𝐬 𝐝𝐨 𝐂𝐨𝐬𝐦𝐨𝐬

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Já haviam se passado quarenta e cinco anos. Ele já tinha se acostumado com aquele cinza metálico que se espalhava por longos metros ao seu redor. Apenas uma tela transparente se estendia para lhe dar uma ampla visão do exterior — que já tinha se tornado muito pouco atrativo para ele, aquele vazio escuro interminável...

A outra borda da galáxia lhe parecia inevitavelmente semelhante ao lado em que ficava a Terra, de onde ele vinha. Era tudo exatamente igual. Um dos seus companheiros de equipe rapidamente lhe advertiria, dando vários pontos de referência estelar para argumentar que não era tudo tão igual quanto parecia — mas não havia sobrado mais ninguém além dele.

O silêncio reinava em toda a nave. Nos primeiros vinte anos, a IA acoplada ao sistema integrado da espaçonave era responsável por entreter seu tripulante e impedir que ele surtasse; mas já fazia duas décadas e meia que os dispositivos de saída de som tinham quebrado, e o viajante já não se importava a ponto de tentar resolver esse problema. Na verdade, ele esperava que aquilo tudo terminasse o mais rápido possível.

Seu rosto, apesar de maltratado pelo tempo e estresse, ainda era muito parecido com o do primeiro dia a bordo daquela maldita nave. A câmara de criogenia funcionava bem: primeiro ele hibernou por uma semana... depois por um mês... um trimestre inteiro... seis meses... um ano... cinco.

Não era muito recomendado ficar sozinho por longos períodos, por isso o viajante costumava entrar em sono induzido tantas vezes. Nos limites da via láctea, a nave seguia imparável rumo ao horizonte perpétuo que se estendia cada vez mais. Uma lata velha numa inércia de cinquenta mil quilômetros por segundo, exceto nos momentos em que era preciso realizar um salto na malha do espaço-tempo

Ele tinha sido incumbido da árdua tarefa de guiar as cápsulas que continham material genético terráqueo para um outro mundo capaz de abrigar vida. A essa altura, a fatalidade prevista para o ano de 2147 já teria ocorrido; a Terra certamente já não poderia mais ser vista no cosmos — apenas seus pequenos destroços espalhados em algum aglomerado de asteroides.

Apesar da dor que sentia ao pensar no seu mundo, a promessa de semear um mundo novo com vida — essa particularidade tão rara que tinha surgido na Terra — era suficiente para lhe dar forças para continuar o caminho até o fim. Tudo estaria conforme o esperado, se não fosse por isso: na pressa de lançar seu viajante àquela jornada peculiar, os especialistas responsáveis por preparar a espaçonave não repararam numa pequena falha no sistema responsável pela abertura de todas as portas, inclusive a principal.

Quando o viajante se deu conta disso, os primeiros cinco anos de sua jornada já tinham passado. E já não existia ninguém naquela vasta imensidão de espaço a quem ele pudesse recorrer. Estava sozinho, preso numa cela reforçada de metal, sem ter como sair dali, a não ser que alguém viesse lhe resgatar — mas não havia ninguém ali na escuridão do Cosmos!

As quatro décadas que passariam lentamente ainda seriam responsáveis por estender a tortura mental que acometia o tripulante da Destiny 4551 — como fora nomeada a nave antes da partida, fazendo referência ao 4551º planeta descoberto, dentre os que eram semelhantes ao nosso. A certeza da morte é uma sensação que pode te fazer confrontar a dura realidade e aceitar o final iminente; quando a ameaça de morte não vem, mas se estica indefinidamente... isso quebra muitas mentes.

O viajante despertara mais uma vez de um sono induzido pela câmara de criogenia, e caminhara em silêncio até estar de frente para a grande janela. Mantivera seus olhos fechados por longos minutos, ali na frente da grande tela transparente que lhe permitia observar lá fora. Sentia um calafrio ao mentalizar as finas paredes de metal que o mantinham fora do vácuo assombroso e destrutivo que se apoderava de tudo lá fora.

Já não podia mais ver a Lua, o Sol também tinha sumido fazia muito tempo. Tudo aquilo que, um dia, fora alguma lembrança de onde ele vinha, agora já não mais podiam ser vistos — não apenas por estar tão longe, mas porque, de fato, não apenas a Terra havia sido destroçada na Grande Catástrofe. Agora ele era o primeiro, e provavelmente o último, humanoide a estar tão longe de casa, sem qualquer coisa que lhe pudesse apontar o local de onde viera.

Apenas o Homem e o Cosmos — ou melhor, apenas um homem e o Cosmos. Em sua pequenez, ele tentava afastar a desesperadora sensação que lhe acometia quando a grandeza de toda aquela sequência de acontecimentos lhe sequestrava a mente. Flutuava sobre o nada, abaixo do nada e rumo a destino algum.

Ele tinha decidido que aquele seria o último dia de sua dolorosa viagem. O solitário viajante fitava o horizonte frio e vazio. Se aquela fosse mesmo a última vez que ele olhava para fora, queria garantir de lhe permitir uma paisagem condizente. Apertou um botão acoplado à tela e uma fina camada translúcida se estendeu, logo depois permitindo uma nova vista...

Ao longo de toda a tela, agora a visão parecia outra. O viajante acabara de ativar o filtro que permitia que ele visualizasse uma representação das emissões de ondas de rádio, e não apenas da luz visível. Longe demais para afetar sua trajetória, mas perto o suficiente para que ele pudesse ver, milhares de quilômetros de poeira e gás giravam ao redor de um núcleo luminoso, e dois jatos colossais eram disparados — para cima e para baixo. A beleza final do Cosmos, um quasar.

Em silêncio, como tudo tinha sido nos últimos anos, ele se voltou para o interior da nave. Observou bem o que poderia ser sua última ação, inspirou profundamente e caminhou uma última vez até a câmara de criogenia. Definiu os parâmetros do microcontrolador e entrou em modo de hibernação. A pequena tela acoplada na lateral da câmara, que deveria apontar a próxima data de despertar, reluzia com a mensagem "parâmetro não definido".

A Destiny 4551 ainda vagaria por parsecs incontáveis, durante infindáveis eras, e seu viajante continuaria adormecido, com seu corpo mantido estável, até que alguém o despertasse... ou para sempre.


planet caravan & solitude - black sabbath
space oddity & starman - david bowie


_Taylordeoliveira

•𝐂𝐨𝐧𝐭𝐨𝐬 𝐝𝐞 𝐋𝐮𝐳 𝐞 𝐒𝐨𝐦•Onde histórias criam vida. Descubra agora