Ela era a dona dos olhos mais brilhantes e do sorriso mais lindo. Facilmente me perderia no cheiro adocicado do seu perfume, entre seus fios encaracolados e castanhos, ainda mais agora, com o os raios de sol refletindo na pele negra, que tornava Nelle a mulher mais incrível do mundo. Eu a amava, amava além da minha própria vida, mas ela nem sequer sabia do meu real sentimento.
— Por que está me olhando assim, Capitu?
Rodando o belo e volumoso vestido vermelho da quadrilha de São João pelo quarto, Nelle trouxe os orbitais escuros para esquadrinhar meu rosto apavorado, juntos com os dedos longos sobre meus ombros. O toque dela era sutil e devastador ao mesmo tempo, quebrava as barreiras que impôs há muito tempo e transformava meu coração em um tambor de escola de samba.
— Não é nada. — Menti, sem conseguir encará-la.
— Tem dias que não me responde direito. — Ah! Nelle também era teimosa como só ela.
— Está tudo bem, já disse. — A afastei propositalmente, a distância curta entre nós era uma verdadeira tortura.
— Sabe que pode me falar qualquer coisa, não é? — Sentou ao meu lado na cama. — Somos melhores amigas desde… é… desde sempre, Capitu. Enfrentamos juntas tudo e todos até agora: os idiotas mimados da escola, a separação melancólica dos meus pais. Eu e você, sempre juntas. Então, por favor, não me tire da sua vida assim.
— Pare de se preocupar comigo, hm?! Devia estar terminando o seu penteado. Você é rainha da festa junina.
O movimento negativo da sua cabeça indicava a indignação, Nelle estava puta comigo. Prestei tanta atenção na ira incrustada no seu rosto, que não era nada habitual, e não notei o quão perto ela chegou: pouquíssimos centímetros do meu rosto.
Puta merda!
Dizem que estar apaixonada é sentir as borboletas dançando no estômago, mas não me senti assim, pelo contrário, foi como ficar frente a frente com um tigre feroz, paralisante e assustador. E estava, com toda certeza, apaixonada por Nelle.
No entanto, não podia perdê-la, perder sua amizade. Só restou ela na minha vida medíocre, e a minha avó que não tinha uma expectativa de vida boa o bastante para me ver chegar na faculdade. Sem Nelle, estaria sozinha.
Então, tentei me desvencilhar, a tirar de cima de mim, só que Nelle dividia seu tempo entre as notas impecáveis, as aulas de dança e capoeira. Tudo nela era perfeito, assim como sua força. Acabei presa entre a cama e ela, com o coração saltando pela boca e os sentimentos à flor da pele, causando uma bagunça fodida no meu peito.
— Nunca foi um problema te contar que eu gostava de garotas — a mão da mais nova acariciou a linha da mandíbula e jogou os fios azulados para trás da minha orelha —, do mesmo jeito, acredito eu, que não foi para você me contar que também gostava de meninas…
— Onde quer chegar? — Meus lábios tremiam e mal consegui formular a frase.
— Capitu, gosta de mim?
A minha consciência deve ter deixado meu corpo por alguns segundos. Não pude responder, tudo ao meu redor girava, um zumbido horrível invadiu a minha cabeça, acompanhado das imagens de nós duas, das lembranças lindas que construímos ao longo dos anos, como amigas, amigas que fizeram um pacto aos dez anos de jamais permitir que a outra caísse. Era isso que éramos, amigas; e, por mais que amasse Nelle com cada átomo do meu corpo, não destruíria nossa amizade por causa do meu maldito egoísmo.
— Capitu? — Repetiu, ansiosa pela resposta.
— É melhor ir embora.
— Quê? — Saltou de cima de mim perplexa.
— Vá se arrumar na sua casa. Eu termino a maquiagem sozinha.
— Não está falando sério, está?
— Por favor, vai! — aumentei a voz e as lágrimas se formaram nos meus olhos.
— Só depois que responder a pergunta que te fiz. — Nelle passou o antebraço no rosto para limpar as lágrimas.
— Não posso responder — disse após longos minutos de silêncio.
Naquele momento, algo que nos ligava rompeu. Jurei ouvir o barulho do vidro se partindo. Parecia que a cada segunda que Nelle ficava calada se distanciava um quilômetro de mim, decepcionada de um jeito que nunca vi.
— Por que não?
Porque eu te amo pra caralho e morro de medo de perder a única pessoa que me faz rir todos os dias e ter coragem para levantar da cama.
— Por quê? — Desta vez, ela gritou e me fez recuar de volta pro colção.
Meu silêncio reverberou pelo ambiente, rolando junto com nosso pranto.
— Covarde!
— Nelle, não queria que as coisas acontecessem assim…
— Foda-se! Afinal, ninguém realmente me enxerga. Foi engano meu achar que você seria diferente.
Ela rumou furiosa para porta, segurei seu pulso revestido da pulseira de lantejoulas, na tentativa falha de a impedir. Porém, Nelle se soltou e me lançou o seu olhar mais cruel. Só havia visto aquela expressão de rancor nos seus olhos quando tio Henrique, seu pai, saiu de casa para assumir a amante. Era rancor.
Meus dedos ainda possuíam o formato do seu pulso quando a porta bateu.
E eu estraguei tudo outra vez.
[...]
Ir para a festa junina da escola não era o que queria. Só queria me enfiar embaixo das cobertas de crochê da vovó e devorar um pote de brigadeiro enquanto enchia a caixa de mensagens da Nelle.
De qualquer forma, ela não iria me atender, mas a apresentação de dança do colégio não ia faltar. Nelle nunca faltava. Essa a minha esperança de explicar o quanto idiota fui, que a amava e, se ela quissesse, passaria o resto dos meus dias nos seus braços.
Todavia, as horas avançaram e nada da Nelle. Os professores ligaram, a mãe dela, que se sentou do meu com um sorriso doce, também ligou, mandamos mensagens e nem sinal da garota.
O peso no peito só aumentava, as apresentações, pessoas e cores passaram na minha frente como borrões enquanto corria até a casa dela na esperança de encontrá-la no sofá vendo a sua série preferida.
Vai ficar tudo bem, ela estará bem. Nelle é forte.
Quando cheguei na casa de Nelle, finalmente descobri o que quebrou entre nós: o seu coração. Eu o quebrei mais do que já era.
Depois dessa conclusão, só vi flashes. Flashes da corda em volta do pescoço dela, dos pés suspensos, os lábios arroxeados, as sirenes do corpo de bombeiro, os gritos…do meu coração desistindo junto com ela.
Eram essas as lembranças cruéis que tinha daquela noite, da noite que perdi o amor da minha vida e que nossa última conversa foi uma briga. Dois anos se passaram para eu entender que meu amor me cegou, Nelle não era perfeita, ela precisava de ajuda, mesmo sem pedir e sempre esboçar um sorriso, ela precisava. Mas ninguém realmente a enxergou.
Eu não enxerguei, os cortes antigos e novos nos meus pulsos não enxergaram.
Fim.
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Meu Caderno de Contos
Short Story"Meu Caderno de Contos" é um compilado dos pequenos contos que vou escrever ao longo do tempo. 📌Gêneros variados. 📌A cada capítulo uma nova história. 📌 Obras autorais. Plágio é crime: Crime de Violação aos Direitos Autorais no Art. 184 - Código P...