III. | A menina que não sorri

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A pequena Kaheris volta ao altar no dia seguinte. E, para seu desconforto, volta a ver a menina séria no intervalo entre rezas de peregrinos. 

Kaheris tenta estudá-la, mas as crianças não se demoraram como no dia anterior e, por isso, a sua tentativa prova-se infrutífera. A única coisa que consegue é uma troca de olhares. Mesmo com a cortina e o véu entre ambas, Kaheris sente que a outra a olha nos olhos e isso incomoda-a tanto como a falta de expressividade do rosto da menina.

No terceiro dia, a Criança Abençoada faz uma aposta consigo própria. Se as crianças passarem de novo, ela irá atrás delas. Se não, vai esquecer a menina de cabelos rosa de uma vez por todas.

Não muito depois de estabelecer o acordo, Kaheris vê-se obrigada a ir contra todos os seus instintos e abandonar o altar para ir no encalço das crianças. As suas túnicas e os seus adornos atrasam-na, mas ela é capaz de os seguir até um planalto descampado. A arfar, Kaheris aproxima-se deles e pergunta-lhes se pode fazer parte das suas brincadeiras. Todos a olham e, para sua surpresa, encolhem os ombros e aceitam que se junte a eles.

A Criança Abençoada despoja-se dos acessórios desnecessários antes de trocar apresentações com os demais. A rapariga que tanto a intriga, que a observa com curiosos olhos dourados, estende-lhe a mão.

— Shira.

Kaheris sorri ao retribuir.

— Kaheris.

As outras crianças puxam-nas para um jogo, quebrando a troca de olhares. E no meio de toda a diversão e ânsia de fazer novos amigos, Kaheris esquece-se de vigiar a menina com cabelos de um rosa mais forte que o seu. Quando se lembra da tarefa que queria cumprir, Shira já desapareceu e está na hora de voltar ao altar antes que deem pela sua falta.

Assim, a tarefa de compreender o que tanto lhe incomoda em Shira passa para os dias seguintes. 

Sempre que o número de peregrinos na estrada diminui, Kaheris sai do seu posto para se dirigir ao planalto, onde combinam todos regressar no final de cada dia. Ela torna-se amiga de todos mas, para sua surpresa, é com Shira que se sente mais à vontade.

O outra menina é gentil, inteligente e divertida, apesar da cara de poucos amigos que ostenta regularmente. É bastante prestável e cuidadosa e brinca sempre a qualquer coisa que seja sugerida. Há algo nela que atrai as outras crianças, incluindo Kaheris, e que inspira confiança.

Mesmo sem esboçar um só sorriso, por mais pequeno que seja, Shira é capaz de deixar Kaheris à vontade o suficiente para esta lhe confessar que vive no Templo. Nenhuma das outras crianças sabe. Apenas Shira é alvo de uma estima grande o suficiente para que a Criança Abençoada lhe conte tudo sobre si própria, desde o mais insignificante detalhe até ao mais exigente costume do Templo.

— Gostas de viver no templo? — pergunta Shira um dia, enquanto ajuda Kaheris a recolocar todos os acessórios que tirou de manhã ao chegar ao planalto. 

As outras crianças sairam pouco antes, quer para regressar a casa, quer para mudar de local de brincadeira. Sobram apenas as duas.

— Sim... e não — admite Kaheris ao apertar as sandálias.

As mãos de Shira imobilizam-se.

— Como assim?

Kaheris levanta-se para sacudir as túnicas.

— Tem as suas coisas boas. Mas há coisas que, cada vez mais, percebo que me fazem falta.

— Como a liberdade?

Ambas começam a caminhar montanha abaixo, em direção ao altar no meio da floresta.

— Sou livre o suficiente. Não escolhi ser uma Criança Abençoada, mas é uma grande honra. Se fosse um fardo demasiado pesado, já teria abandonado o Templo há muito. — Kaheris suspira. — Mas gostava de ter mais pausas entre os meus deveres. E de ter uma família de verdade. Os sacerdotes e as crianças são fantásticos, mas não é a mesma coisa. — Ela vira-se para a amiga. — Tens família?

— Sim.

— São próximos?

Shira pondera por uns instantes.

— Pode dizer-se que sim. Costumo cuidar do jardim do meu pai com ele e, de vez em quando, a minha mãe pede-me ajuda com as suas tarefas — responde, encolhendo os ombros.

— Deve ser bonito partilhar um laço assim.

Ambas caem num silêncio contemplativo.

— Porque é que estás sempre a tentar fazer-me rir?

Surpreendida, Kaheris levanta o véu que esconde a sua face e olha a amiga.

— Eu consigo ler através das tuas tentativas falhadas — constata a mais alta.

Kaheris cora, envergonhada por ter sido apanhada. Tinha tomado como missão arrancar pelo menos um sorriso de Shira muitos dias antes, mas todas as suas tentativas tinham saído furadas.

— Tens sempre uma expressão tão vazia. Porque é que nunca sorris?

— O que é que a ti te importa que expressão tenho na cara? — pergunta Shira, parando com os braços cruzados sobre o peito.

— Como pessoa que tem de esconder as emoções de todos, a toda a hora, aprendi a dar-lhes valor. E os sorrisos sinceros, para além de exteriorizarem as emoções mais bonitas de todas, são os mais preciosos.

Kaheris sobe para cima de uma velha árvore caída no chão e sorri ante o silêncio da amiga.

— Não sabes? Há uma lenda que é contada de geração em geração. Bem, pelo menos no meu Templo. — Ela encolhe os ombros antes de começar a caminhar sobre a madeira morta. — Sima, a Deusa da Cura, é a mais séria de todos os Deuses, mas o seu sorriso tem poder fora das Terras Sagradas. Se algum mortal a conseguir atrair para os altares de adoração com as suas rezas e a fizer sorrir, ganha anos de vida. 

— E é por isso que estás sempre a tentar fazer-me rir? Porque os sorrisos são preciosos?

Kaheris levanta o rosto exageradamente para fitar os seus olhos dourados sob o véu.

— Por isso e porque um sorriso te ficaria bem na cara. Deixar-te-ia mais bonita.

Shira não tem oportunidade de reagir às palavras de Kaheris porque a mesma, distraída, coloca mal o pé no tronco da árvore. Sem balanço, a pequena escorrega pela madeira de uma maneira estranha, caindo no chão com aparato.

O espanto domina o silêncio por breves segundo. Depois, Shira desmancha-se a rir. Kaheris, toda dorida e esfolada, acaba contagiada pelo ataque de riso, soltando gargalhadas sonoras até lhe virem as lágrimas aos olhos.

— Estás bem? — pergunta Shira, aproximando-se depois de se recompor. 

Kaheris quase lhe responde que sim, mas é interrompida por um grito. Alguém chama por ela.

— Por Uros! — exclama, levantando-se. — A Cerimónia é amanhã! Hoje tenho de ir embora mais cedo.

A pequena recompõe-se em instante e volta-se para Shira.

— Tenho de ir. Gostei de te conhecer. Até sempre! — diz antes de partir, deixando para trás um par de olhos dourados recheados de confusão.

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O sorriso de Sima ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora