V. | O adeus

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Theia sai pela porta a correr para ir brincar com os amigos quando a avó acaba a história que lhe estava a contar e Hatta se aproxima para ajudar a sogra a recolher-se. Kaheris está cansada, com dores, e a precisar das suas ervas.

Hatta instala a matriarca, acende as ervas para defumar o quarto e sai para preparar a sua infusão.

— A que devo esta visita?— pergunta a mais velha, assim que tem a certeza de que a nora não a consegue ouvir.

— Sabes muito bem porquê — responde a Deusa Menor, materializando-se nos pés da cama.

Kaheris sorri para Sima no silêncio, que se aproxima da cabeceira antes de se sentar na beira da cama.

— Não te arrependes de me ter feito rir?

A idosa nega com a cabeça.

— Passámos bons momentos juntas por isso. É verdade que a minha longevidade fez com que sobrevivesse aos meus dois filhos mais velhos, a uma nora e a uma das minhas netas. Isso dói-me, não haja dúvida. Mas pude conhecer e ver crescer a pequena Theia, a mais nova do meu mais novo, e saber que a Hatta tem mais um a caminho. Sei que isso é uma bênção. Por isso, agradeço do fundo do meu coração, Poderosa Deusa.

— Já te disse para me chamares pelo nome — diz Sima, enxugando as lágrimas da humana e ajudando-a a deitar-se mais confortavelmente.

As ervas defumadas começa a fazer efeito e as dores de Kaheris começam lentamente a dissipar.

— Posso ousar pedir-te um último favor, em nome da nossa amizade, Sima? — pergunta, sorrindo.

A Deusa assente.

— Olhas pela minha família, quando a guerra rebentar? Pelos meus filhos, genros e netos?

Sima vive nas Terras Sagradas, mas até ela sabe o que se passa na terra. Admen sempre foi um reino pacífico, embora poderoso. E, com medo desse poder latente, as nações vizinhas estão a unir forças e a preparar-se para acabar com qualquer ameaça antes que a mesma possa tomar forma.

— Eles de certeza que serão chamados... A Guarda Real em peso está a preparar-se e aumentaram o número de Cerimónias de Fusão celebradas. Fala-se de que até andam a recrutar todos os que carreguem a marca de Nithos e se queiram redimir para com o Reino.

A Deusa remexe-se sobre as cobertas. Ylir tinha feito a sua cabeça em água da última vez que salvara das garras da morte alguém que não devia. Se o fizesse de novo, Uros poderia tomar o partido de Ylir e castigá-la por mudar destinos a seu belo prazer.

— As vidas deles não depende apenas de mim... Mas vou fazer o que conseguir por eles.

Kaheris aperta a mão dela nas suas.

— Eu sei que até os Deuses têm limites. Eu não te peço que os salves, porque todos morremos um dia. Só te peço que os deixes ter uma morte pacífica. Se eles se encontrarem numa posição em que estejam a sofrer antes do seu fim, por favor ajuda-os.

Sima assente e levanta o olhar. Qhyrteus espera pacientemente no canto da divisão, invisível para a humana.

— Está na minha hora, não está?

As amigas encaram-se. Kaheris é muito mais nova que Sima, mas, por vezes, parece que se encontram na situação inversa.

— Voltaremos a vernos — jura a Deusa.— Convidar-te-ei para o Mearal sempre que puder enquanto estiveres nos Domínios de Qhyrteus e, quando reencarnares, voltarei a cruzar o teu caminho.

Kaheris sorri, fechando depois os olhos enrugados.

— Parece-me... bem...

Sima, de expressão impassível, acaricia a face enrugada da amiga adormecida. Depois, murmurando um último adeus, a Deusa retira-se, dando espaço para o Deus da Morte fazer o seu trabalho.

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O sorriso de Sima ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora