Sonhos Para Um Próximo Futuro - Beth Greene

Capítulo 03

Annette tinha aquele pressentimento, lá no fundo, de que Shawn estava certo, mas como mãe, como alguém que é responsável por outro alguém, ela se negava a admitir aquilo em voz alta, enquanto forçava sua mente a trabalhar em busca de alguma solução para aquela situação tão confusa em que estava.

“Shh, não faça mais esforço, logo chegaremos, você precisa.. Ser tratado logo.” Foi tudo que Annette disse voltando a dirigir.
 
“.. Sabe, aconteceu tudo muito rápido.. Os gritos, o choque, o pânico.. Aquele grupo de pessoas no fim estavam atacando outras pessoas.. Não, não estavam só atacando.. Eles estavam estraçalhando.. Comendo.. Mãe.. Eles estavam comendo outras pessoas.. Eu não consegui ficar só assistindo enquanto cada um corria por si.. Eu desci de cima da van, Henry tentou me impedir, mas eu sempre tive reflexos melhores que ele, então ele não conseguiu..”
 
Annette não precisou virar o olhar para Shawn para saber que seu filho tinha um leve sorriso orgulhoso nos lábios quando proferiu as últimas palavras de sua descrição.
 
“Eu não consegui salvar quem estava sendo atacado quando cheguei até um dos ‘carnívoros’, mas mesmo assim o chutei pra longe.. Mas a visão das tripas da pessoa atacada pra fora, enquanto ainda estava viva.. Me deixou tonto e com ânsia de vômito.. Me deixou atónito o suficiente pra outro daqueles carnívoros avançar em mim.. Ele era um pouco maior que eu, pele bronzeada e.. Olhos que pareciam não me enxergar..”
 
Naquela parte da descrição de seu filho, as mãos de Annette não puderam deixar de suar, seu filho estava ali, do seu lado.. Então não tinha como acabar estraçalhado como as outras pessoas de quem ele falou que foram atacadas.
 
“O carnívoro era mais forte do que eu.. Apesar de me considerar alguém forte.. Ele era maior, então era difícil manter as mãos e a boca dele longe da minha carne.. Eu sabia que a partir do momento que eu desse o menor dos vacilos, perderia uma parte de mim.. E eu também sabia que isso não demoraria pra acontecer.. Afinal tentei agir como herói no calor do momento, mas era mais fraco que ele.. Que droga..”
 
“o que aconteceu afinal? Você esta inteiro.. Pelo menos não vejo nada faltando..” no fim Annette não aguentou a ansiedade.
 
“Henry. Ele sacou uma arma e atirou contra o carnívoro.. Um tiro, bem no coração..” Shawn parou de falar ali, e Annette soltou um suspiro de alívio, cedo demais. “O barulho do disparo me surpreendeu, e eu vacilei.. E pra minha surpresa, tanto quanto pra surpresa de Henry, o carnívoro continuou a tentar avançar em mim.. Eu sempre achei que nessas situações, a morte eminente mostraria tudo em câmera lenta.. Mas não. Tudo foi rápido e eu não entendi na hora, mas agora eu percebo.. Henry disparou mais quatro vezes contra diferentes órgãos do carnívoro, rim, pulmão, fígado.. E enfim o cérebro.. Isso me fez pensar.. Que tipo de humano morre apenas depois de tornar inútil a maior parte de seus órgãos vitais? Aquilo.. Aquilo não era humano.. Não sei qual dos tiros, mas um deles atravessou o carnívoro e me acertou.”
 
Agora que Annette escutou aquilo, não pode deixar de ficar tensa de novo. Seu filho havia sobrevivido aquilo, e graças ao rapaz que ela tanto diz ser má influência para seu filho.
 
“Onde.. Onde está Henry agora?” Annette temeu a resposta.
 
“Henry.. Me ajudou a fugir e me escondeu no interior oco de uma árvore.. Depois saiu e atraiu eles pra longe com os tiros.. Ele deixou o celular comigo pra chamar por socorro.. Eu sei que ele conseguiu fugir, ele é mais rápido que eu, apesar de eu ter melhores reflexos.” Um leve sorriso se fez no rosto de Shawn e Annette, afinal mesmo não gostando de Henry, se sentia grata por ele salvar seu filho e saber que ele estava salvo. “O problema real veio depois.. Escutei mais tiros e vozes da cavidade em que eu estava.. Eles falavam sobre algo.. Achei que poderiam ser ajuda, mas não consegui forças pra sair dali e senti que não devia fazer barulho.. E estava certo.”
 
Annette não pode deixar de ficar confusa, mas resolveu não perguntar mais. “Estamos quase lá.. Só mais uns minutinhos querido.”
 
Shawn nada respondeu, apenas olhou em volta pela janela, muito tonto, mas logo reconheceu aquele caminho e entrou em desespero. “Mãe! Eu disse pra não ir pro hospital!”
 
“Você precisa de atendimento médico!”
 
“Apenas não, mãe- Para.. PARA O CARRO!”
 
Em um movimento brusco, Annette pisou no freio fazendo a picape dar uma engatada e a jogar brevemente pra frente por não esta com cinto, enquanto fez o cinto que segurava Shawn, pressionar ainda mais seu machucado, derramando mais sangue. Annette estava surpresa, era a primeira vez que Shawn levantava a voz para ela, mas quando seu rosto raivoso virou para o repreender, tudo que viu foi uma careta de dor na expressão de seu filho enquanto este pressionava o próprio machucado. O silêncio se formou ali, Annette ainda queria levar Shawn ao hospital, mas após vê a poça de sangue no piso do carro, além do sangue que ele perdeu antes dela o achar..
 
“Eu.. Eu não vou sobreviver..” Shawn quebrou o silêncio.
 
“Não.. Não fale besteira!” Annette sabia que o que ele disse era verdade, mas ouvir aquilo fora de seus pensamentos..
 
“Mãe.. Eu perdi muito sangue..”
 
“Temos sangue compatíveis! Apenas precisamos chegar ao hospital!” revelou seu pensamento e voltou a girar a chave pra ligar o carro, apenas pra sentir a mão ensanguentada de chão segurar a sua, a fazendo o encarar.
 
“O hospital não é seguro.. Os caras que chegaram depois que Henry me escondeu.. Eles estavam armados até os dentes e se vestiam como aqueles esquadrões secretos do governo que a gente vê em filmes.. Eles atiraram em todos os jovens que conseguiram fugir dos canibais.. E depois de falaram algo sobre área limpa, chegou um comando de que o próximo local alvo era o hospital..” Shawn parou brevemente após vê o olhar assustado no rosto de sua mãe.
 
“Mesmo assim..”
 
“Eu não vou sobreviver por perda de sangue.. Mas não quero que você não sobreviva por tentar salvar um cadáver.. Vamos pra casa, mãe.”
 
Silêncio.
 
Annette não conseguia dizer nada além de desviar o olhar de seu filho para a estrada e fazer como ele disse, ligar o carro e fazendo outro retorno, desta vez com destino de ir para casa. Estavam a vinte minutos de casa naquele momento, e a velocidade máxima daquela picape velha e enferrujada era 60 km por hora.
 
“Desculpa..” Novamente, foi Shawn quem quebrou o silêncio.
 
“..Pelo quê esta se desculpando?” Annette precisou juntar todo seu controle emocional para não gaguejar ou começar a chorar.
 
“Na ligação, eu disse algo sobre pedir um milhão de desculpas e.. te fazer companhia em todo lugar cafona que você gosta de ir.. Não acho que vou conseguir e-.. Desculpa por te fazer chorar agora.”
 
As lágrimas que Annette lutava tanto para não derramar, começaram a escapar junto com alguns soluços que ela tentava segurar apertando o maxilar e engolir. O nariz começando a escorrer a cada fungada entupiam seu nariz dificultando sua respiração, assim como as lagrimas embaçavam sua visão.
 
“Beth.. Eu acabei prometendo pra ela que a ensinaria a usar a espingarda.. se ela me cobrisse..” Shawn sabia que mais ele falava, mais sua mãe chorava, mas naquele momento, em que estava com um pé dentro da cova e outro fora, vários arrependimentos perturbavam seus pensamentos, ao ponto de sentir que ficaria louco se não os cuspisse. “Espero que ela não fique ressentida por eu quebrar a minha promessa.. Ou se culpe por ter me encobertado..”
 
O caminho continuou, Shawn cada vez falava coisas mais aleatórias, como pedir desculpas por algo que tinha desobedecido, se questionando sobre quem sumia com os doces de seu quarto, até mesmo dizendo coisas que desejava ter feito.. Sua voz cada vez mais baixa e rouca. Ele sabia por que estava tão falante, mesmo não tendo forças nem para respirar mais.. Ele queria ouvir a voz de sua mãe.
 
Talvez levar um ultimo sermão, puxão de orelha, ou um abraço.
 
Mas ele sabia, ela não estava pronta pra aceitar que o perderia, por isso nenhum sermão, nenhum puxão de orelha, nenhum abraço.. Apenas soluço e fungadas escapavam de Annette.
 
Todavia, de todas as coisas que ele disse, ela tem certeza que a última afirmação dele foi sobre sentir saudade do pai. Annette não escutou mais a voz sussurrante de Shawn, e não teve coragem de olhar para o lado e confirmar o que já sabia, faltava pouco para chegar na fazenda. E quando finalmente chegou, não saiu do carro para abrir o portão da cerca e poder entrar no terreno. Parou o carro em frente ao portão, encostou a cabeça no volante e se permitiu desabar.
 
“Por quê.. Por que não me obedeceu! Só dessa vez.. Por quê? Só por quê? Maldição! Por quê está me deixando também?! Por quê Deus? Não foi o bastante o meu marido?! Por quê não eu..”
 
Agora era ela quem falava e fazia preces para ter uma resposta do corpo inanimado sentado ao lado dela, chorando, gritando, batendo no volante, se alto batendo.. Apenas, tentando suprimir a dor e frustração que sentia, ocupada demais com o próprio luto para perceber a aproximação de Otis e Hershel.
 
“Querida..?” Hershel se pronunciou após passar pelo portão aberto por Otis.
 
O Greene estava confuso com a Annette descabelada e com o rosto manchado pelas lágrimas e catarro, mas ao olhar para o corpo no banco do passageiro, logo entendeu e voltou seu olhar para Annette, que tinha um olhar vago enquanto lágrimas ainda caiam de seus olhos.
 
Ela não parecia de forma alguma está consciente. Isso foi, até um grunhido baixo soar do corpo de seu filho, antes inanimado.
 
Annette virou o rosto, lentamente em direção ao corpo a seu lado, inconscientemente virando seu corpo também. Olhando para o rosto ainda pálido de Shawn, percebeu suas pálpebras tremeluzentes, como quem faz esforço para abrir os olhos.
 
Deus.. Deus havia tido misericórdia e a devolvido seu filho..
 
Um suspiro escapou dos lábios agora ressecados da mulher, que se inclinou em direção ao filho, pousando a mão no rosto dele, sentiu o quão frio estava, como um cadáver.. Assim, viu os olhos do corpo de seu filho se abrir e olhar para ela, e ela finalmente entendeu a descrição de seu filho.. Olhos que te vê, mas que não parecem te enxergar. Annette percebeu rapidamente que não era seu filho na sua frente, mas o monstro culpado pela morte de seu filho.. O choque paralisou o corpo da mulher ali, e quando menos percebeu, seu braço esticado para tocar a bochecha do corpo de seu filho foi firmemente agarrado e mordido. Annette ainda não havia reagido a dor, quando Otis e Hershel agiram mais rápido do que os nervos do corpo da mulher.