Capítulo Único

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O ônibus parou em uma esquina solitária de um bairro afastado do centro de Dublin. O lugar era sujo e cheirava a mijo, mas a jovem já estava acostumada com a decadência do bairro que passou a maior parte de sua vida. Era ali na esquina que brincava com os meninos de futebol e na praça, logo a frente, onde ela importunava os idosos que ficavam jogando xadrez. O bairro era horrível, mas era o seu bairro. Fora ali que beijara Cillian, menino espinhento e torto que nutria uma paixonite por ela. Depois do beijo, não sentira nada especial como as garotas falavam que costumavam sentir. Nenhum arrepio, nem calor. Mas Cillian a perseguiu por bastante tempo, se declarando pelos cantos. Fora ali, no bairro fedorento, que beijara também Sinéad, uma garota de lindos e rebeldes cabelos ruivos. Dessa vez sentiu o arrepio e o calor, sentiu também confusão e raiva por ter gostado tanto assim do beijo de outra menina.

No entanto, o bairro irlandês decadente trazia lembranças ruins. Em sua grande maioria, lembranças que ainda deixavam um gosto amargo na boca. Fora ali que Sinéad terminou tudo alegando que o pai descobrira e que era melhor ela gostar de meninos. Fora ali que o seu próprio pai percebeu que a filha não era bem o que ele esperava.

- Miko, veio visitar seu velho?

A jovem despertou de seus sonhos com uma voz conhecida.

- Ei, Ronald, como vão as coisas?

Ronald era o dono do mercadinho local, um senhor gordo e de bigodes grisalhos. Era amigo de Liam, pai de Miko, e nutria um grande respeito pela garota, que costumava brincar com seus dois filhos no fundo do mercado.

- O bairro está igual, todo mundo indo embora pra cidade grande. Comigo mais ou menos... as pernas não andam boas. Não consigo nem levar as caixas pra dentro do mercado, garota. Não queira ficar velha... As coisas simplesmente param de funcionar.

Miko riu.

- O senhor ainda consegue beber como ninguém, tenho certeza!

- Isso é. Meu fígado segue funcionando! – Ronald coçou a barriga grande e riu. – Quer apostar quem bebe mais?

- Melhor não. Vou perder e não tenho dinheiro pra isso! Falando em cerveja, como está o velho?

- Daquele jeito, Miko. Precisa ser arrastado pra casa depois de beber no pub. Chora que você não está aqui, chora que sua mãe não está aqui, tudo isso.

- Deveria chorar mesmo. Eu só venho porque sou idiota.

- Não, você vem porque ama seu pai. Todos nós sabemos dos motivos que te fizeram sair desse lugar e muitos ficaram do lado do Flanagan. Longe de mim te criticar, garota. Te vi crescer e te considero tanto quanto meus meninos, mas não carregue essa raiva. Ele está velho e não vai durar muito.

A jovem suspirou cansada e bagunçou ainda mais o cabelo liso. Todo ano era a mesma coisa. Ronald era um amor, mas não entendia a dor que sentia quando visitava seu pai. Miko Flanagan era filha de um vendedor irlandês, o velho Liam, com uma aspirante a modelo japonesa. A mãe, cansada da vidinha de dona de casa, voltou para Tóquio e deixou a pequena Miko com o pai, um brutamontes sem qualquer senso de criação e carinho. O senhor Liam, um puro sangue irlandês, não aceitou que sua filha gostasse da mesma coisa que ele, por isso fez a vida de Miko um inferno, até que ela saísse de casa em busca de paz, emprego e uma chance de não ficar igual a todos daquele bairro infeliz e medíocre. Estudava longe dali e quando sua consciência cristã pesava voltava para visitar o pai.

- E como vão os meninos?

Jack e Daniel não era mais meninos e Miko não os via há tempos, mas lembrava com carinho da dupla espevitada que a tratava como igual.

Pai apenas no papelOnde histórias criam vida. Descubra agora