4. A decisão

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Em casa, percebi a dimensão da tragédia, não somente a pessoal, mas a de toda a comunidade, integralmente feita de pessoas de bem – como se existissem pessoas de bem, meu Deus somos tolos, e como somos. Até então, não havíamos tido notícia de barbárie que se comparasse a isso. Se pensarmos com mais sensibilidade, qualquer assassínio produz horror em nosso espírito, porém, em se tratando de uma pessoa tão importante para nós e tão linda, o impacto daquela cena terrível é capaz de lançar a sombra mais escura e tenebrosa em nossos corações. O modo também como fora encontrado aquele corpo delicado é assustador, pois não era ali apenas um cadáver que expressa a vítima de uma loucura momentânea, mas algo premeditado, alguém queria que aquele assassínio se tornasse espetáculo.

Durante toda a tarde remoí sozinho no celeiro a tristeza que tomara conta de meu peito. O vazio e a impossibilidade de dizer "eu te amo" flertando diretamente os olhos da diretora Elisa pungiam-me tanto a cabeça que toda minha solidez masculina se desfez em pranto, em lágrimas sinceras, em choro de amor e saudade. Imaginava tantas possibilidades para nós (eu e Isa), sonhava coisas talvez impossíveis de realizar, contudo acreditava que o futuro sempre pode reservar uma surpresa boa, algo inesperado. Tenho para mim que os tabus nascem com o desafio de serem quebrados, e muitos deles gostaria de quebrar, um em especial me seduzia, ficar com Isa. Um aluno, sim, poderia amar e ser amado por sua diretora, afinal, dez anos não é uma diferença tão grande.

Não desliguei o smartphone, afinal, ele já faz parte de mim. Entretanto, havia-o posto para vibrar. E ele vibrava já há um tempo, mas não queria atender, precisava ainda digerir aquela dor que parecia nunca mais se dissipar. Deviam ser amigos fazendo intrigas ou comentários maldosos nas redes sociais. Mesmo assim, senti uma vontade meio curiosa para saber quem insistia tanto em falar comigo... talvez minha mãe... Atendi, por fim.

– Hi!

– David?

– Hi...

– Quero te falar.

– Quem é? – perguntei sem muito pensar em quem poderia ser.

– Ué!? Sou eu... Maria Lúcia.

– Oiiii... desculpa... não tô bem...

– Posso te encontrar? – senti em sua voz uma mudança, não era por mim, mas havia uma coisa a mais que não saberia explicar. Éramos amigos mais do que íntimos, fazíamos tudo juntos e Maria Lúcia sabia de minha paixão por Isa.

– Você tá em casa?

– No celeiro.

– Logo, logo, estarei aí. Beijo.

– Bye!

Precisava mesmo de companhia naquela tarde, a de Maria Lúcia seria ótima, gostava de estar com ela tanto quanto gostava de ficar na presença de Isa. Essas duas mulheres são especiais para mim; a Isa era especial, restou-me Mary Lucy.

Maria Lúcia me encontrou sentado na mureta das baias dos cavalos, batendo as pernas no ar, feito uma criança desolada depois da bronca da mãe. É um hábito dos meninos jovens se fazerem de durões para os outros, mas, lá no interior, percebem que são tão frágeis quanto as meninas: isso bom.

– Hi.

– Oi, David – um beijo reconfortante estalou em minha bochecha, Maria Lúcia era carinhosa.

Conversamos um pouco, ambos estávamos chocados pelo que acontecera. Ela me confessou que chorou muito na hora, desejava me encontrar, porém não me via em lugar algum. Disse a ela que estava no pátio e que não me demorei muito naquele pesadelo de carne e osso; aliás sentia na carne e no osso as dores de meu primeiro amor ser assassinado com brutalidade, embora confesse que não era uma morte ordinária que se apresentava ao público, havia mistério nela para ser desvendado. Quem a planejara, fizera sabendo o efeito que causaria a todos. A comunidade estava apavorada, poderia acontecer com qualquer um agora. Será se teríamos uma nova vítima? Acho que não, Isa não era uma mulher comum, nela o espírito era mais elevado, nada nela era igual. Poucos em poucas coisas se assemelhavam a seu jeito de ser. Era única. Isso eu sabia, meu coração sentia e todos tomavam como verdade absoluta. Quem desejou sua morte, fê-la com pretensão além do compreensível. Provavelmente a polícia, se por aqui "pintasse", teria que investigar com muito zelo as pistas que certamente estariam no local do crime.

– David, eu acho que a polícia não vem tão cedo. Nesses casos, checar o local do crime é importante o quanto antes, o corpo não pode passar de amanhã... acho que a galera da funerária vai retirar o corpo.

– Não pode! A polícia tem que investigar para depois alguém tirar... não é assim?

– Eu sei, cara... mas o corpo, infelizmente, começa a se decompor – percebi que ela fazia a observação com pesar, não era fácil imaginar Isa naquele estado, no pátio da escola. Ela continuou: "Eu acho que deveríamos agir".

"Ui", pensei. Agir? Não. Isso não era coisa para nós.

– David, pense comigo. Que mal faríamos se fôssemos à noite ao colégio, caso a polícia não venha por agora? Podemos colher pistas, pense bem.

– Não sabemos nada sobre investigações – disse com o pessimismo inerente aos meninos tolos.

– Ora, David, como você é uma besta! David, preste a atenção, isso sabemos fazer pelo que vemos nos filmes, lemos nos livros e pelos ensinamentos do inspetor Google... O que acha? – ela conseguiu sorri um pouco o sorriso de quem tem a resposta.

– Não sei.

– Sabe sim, nós podemos contribuir para encontrar o sem alma que matou seu amor – essa última argumentação mexeu comigo.

– Pode ser... mas entraríamos lá como?

– Ora, à noite, às escondidas... o zelador ficará lá e sabemos que em alguma hora vai dormitar, senão fugir dali. Ele é um cagão.

– É mesmo – deixei escapar os primeiros risos do dia... muito tímidos e sem graça, mas eram risos.

– Então, se a polícia não vier, e certamente não virá, iremos na madruga. O pessoal da funerária, no dia seguinte, chegando antes de nós, destruirá as provas do crime.

– Ok, você venceu... Está decidido. Na "madruga" nos encontraremos.

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⏰ Última atualização: Dec 11, 2020 ⏰

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