6 - O ATEU

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Três horas se passaram desde que o pastor Mateus atravessou as portas. Ali, na sala de espera, estava Pedro sozinho com seus pensamentos.

Durante horas a fio, buscou ordenar o turbilhão de ideias e reflexões que se mesclavam em sua mente, traçar uma trajetória lógica e formar argumentos sólidos para sua defesa. Conseguiu pensar em vários, estava com toda a argumentação desenhada e cuidadosamente calculada... mas tudo ia por água abaixo quando pensava em sua família.

"Como eles vão se sustentar? Agora que as mãos da mãe não aguentam mais, vai sobrar tudo pra Cris. Tudo bem que ela tá num trabalho bacana, mas vai ficar muito pesado. Bem, a Bia começou o curso de Direito, talvez logo ela arrume um estágio legal, e vai poder trabalhar meio-período enquanto isso não acontece, pra ajudar com as contas. Ai merda, ainda tem o processo do Dani, não dá pra esperar a Bia se formar. Vão ter que arrumar dinheiro pra tudo isso... cacete, que momento horrível eu escolhi pra morrer hein! Burro! Tivesse esperado mais dois anos antes de atravessar a rua sem prestar atenção. Mais dois anos e você podia ter ido tranquilo, inútil!

Bem, imagino que elas vão se virar. Eu criei aquelas duas pra serem espertas. Bem como você me criou, né Gui? Sempre achei estranho falar com os mortos, mas agora que eu sei que você está aí de verdade, tem tanta coisa que eu deveria ter dito frente ao seu túmulo. Você escuta meus pensamentos, é assim que funciona? Como tá aí no Paraíso? Infelizmente, acho que não vamos nos rever. Mas ei, tudo bem. Eu tô pronto, eu escolhi isso. Quando o pessoal chegar, não esquece de dar uma festa grande pra eles hein, porque eu acho que estraguei a festa da Bia lá embaixo. Recebe até o Dani, por favor. O moleque é cabeçudo e arretado, mas no fundo, é um garoto bom! Enfim irmão. Sinto sua falta, e vou continuar sentindo. Te amo!".

Quando terminou sua despedida, Pedro olhou para o lado e viu, acima a porta, a placa iluminada com letras amarelas: Pedro Garcia Santos.

"É. É agora!". Respirou fundo, levantou-se e caminhou, devagar e resoluto, rumo ao seu Destino Final.

...

Pedro havia visto a imagem de Cristo inúmeras vezes ao longo da vida. Sua mãe tinha um tradicional quadro dele emoldurado na estante da sala, com cabelos claros, pele branca e olhos azuis. Ao longo da vida, viu outras versões em filmes, diferentes interpretações artísticas e reconstituições contemporâneas, com base nos fenótipos característicos conhecidos dos judeus naquele lugar e época. Mas nada o preparou para ver o verdadeiro perante ele. Seu primeiro pensamento foi "Ele é igual a mim". O que não era necessariamente verdade, claro. Os traços faciais eram diferentes e Pedro não tinha cabelos e barbas tão grandes; porém, aquele homem tinha a aparência de um trabalhador braçal, submetido às lamúrias do mundo, ao sofrimento da vida. E, paralelamente à humildade de sua imagem, aquele homem, de alguma forma, exalava esplendor e autoridade. Um rei dos pobres, o unguento das máculas mundanas.

Naquele momento, olhando para ele, Pedro pôde entender o que uma vida inteira de ensinamentos bíblicos e discursos de pastores e padres não lhe ensinaram: como alguém pode escolher acreditar que tal ser, tão simples e tão grandioso, é capaz de existir e resolver os problemas do mundo. "Mas ainda assim, não foram resolvidos". Esse pensamento o tirou do transe, e em boa hora, pois estavam prontos para começar. Olhou à sua volta. Os assentos vazios à esquerda e os cheios à direita; Lúcifer acenou para ele, mas Pedro o ignorou. Não sentia nada de bom vindo daquele homem.

- Senhor Pedro Garcia Santos. Está pronto para começar?

- Sim.

- Muito bem. Conte a esse tribunal o relato de sua vida. Escolha os detalhes que julgar importantes.

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