3 - PRIMEIRO CASO

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Paulo Marinho não podia acreditar na maneira rude com que estava sendo tratado. Eles tinham a mínima noção de quem ele era? Estava entre os 15 homens mais ricos do mundo, graças ao império construído por seu avô no ramo de transportes e produtos alimentícios! E foi ele quem, com muito esforço, tendo de lidar com uma série de funcionários e colaboradores imbecis e precisando suportar greve mês sim, mês não, de um bando de pé-rapado mal agradecido que não percebiam a oportunidade que estavam tendo trabalhando pra ele, conseguiu crescer ainda mais seu império, colocando-o no ramo digital, aplicativos e conseguindo uma série de facilitações depois de despontar alguns candidatos na câmara, além de patrocinar o presidente atual e sua nova política favorável a quem realmente importa: o motor do mundo contemporâneo, o titã empresário!

E mesmo assim, depois de tudo que construiu na vida, acordou no pós-morte em um quarto minúsculo, numa cama desconfortável e teve que ficar horas a fio preso numa sala de espera, ouvindo aquela mulher esquelética abrir o berreiro e gente molambenta entrar e sair dali. "Fala sério, que tratamento é esse? Quero só ver onde tá o meu palácio no Paraíso!".

Porém, atravessando as portas duplas, Paulo teve uma surpresa. Não encontrou um anjo receptivo o aguardando para leva-lo ao seu palácio, como recompensa por todo o seu trabalho duro e contribuição em vida. Ele estava em um amplo corredor, todo ladrilhado com colunas brancas de ambos os lados, pinturas de nuvens e anjos nas paredes e um teto alto, talvez 15 metros acima de sua cabeça, o que o fez sentir-se pequeno. Esse corredor levava a um tribunal. O local era circular, iluminado por vitrais que irradiavam uma intensa luz branca, vindo da esquerda e direita, recaindo no centro onde ficava o palanque do réu. O teto era abobadado. Enquanto caminhava em frente, observando os arredores, Paulo viu os bancos do júri, tanto do lado esquerdo quanto do direito, circundando o assento do juiz... mas haviam MUITOS jurados. Ele não conseguia conceber como quantas cadeiras cabiam nesse espaço. Do lado direito, havia a maior diversidade de pessoas que ele já viu na vida: brancos, negros, asiáticos, indígenas, homens, mulheres, velhos, jovens, crianças, vestindo jaquetas de couro, armaduras romanas, vestes de camponeses, hábitos eclesiásticos, quimonos, togas gregas, peles e couros de animais ou, alguns, nenhuma roupa sequer. Do lado esquerdo, pareciam ser todos homens e mulheres contemporâneos, com roupas que eram, no máximo, dos anos 70. A maioria era adulta, mas haviam também adolescentes e crianças, e com exceção de uns quatro ou cinco de ternos alinhados e aparência bem cuidada, a maioria ali estava maltrapilha, alguns sem algum membro ou com expressão depressiva, alcoolizada, uma turba patética.

Conforme entrava no interior daquele salão abobadado, a arquitetura fez Paulo Marinho sentir-se ainda menor. Seus olhos percorreram o salão para a direção da mesa do juiz. Defronte a ela, estava uma figura estranha. Era o primeiro anjo que via, com longas asas brancas curvadas, como as de uma águia, trajando vestes igualmente brancas, similar a uma toga, e sandálias antigas. Mas essa figura, alta, de pele negra e cabelos curtos, segurando um pergaminho em suas mãos, tinha uma aparência difícil de descrever: tinha feições tipicamente femininas, embora não houvesse volume de seios, nem musculatura comum em homens daquele tamanho; sua voz, porém, retumbante, autoritária e imponente era carregada de um timbre inquestionavelmente masculino.

- Paulo Gutierre Marinho Junior, 55 anos. Aproxime-se do palanque, por favor!

Sem questionar, Paulo avançou e subiu os três degraus do palanque destinado aos réus. Enquanto prosseguia, tirou seus olhos do anjo que o anunciara e tentou analisar o juiz, mas... certamente havia algum engano. "Isso aí não é um juiz, parece muito com os faxineiros lá do escritório. Que porra é essa?". Certamente Paulo não foi capaz de ocultar o asco em sua face, mas ele sequer tentou.

O homem sentando tinha cerca de 1,70 m, embora se elevasse sobre todos a partir de seu assento. Suas vestes eram simples, togas surradas que outrora foram brancas, mas agora tinham manchas de terra. Seus cabelos e barba eram negros e volumosos, assim como suas sobrancelhas; porém, estavam desalinhados, como se tivesse acabado de acordar e não os tivesse escovado. Seus olhos eram de um tom cinzento muito intenso, e seu olhar era difícil de sustentar por muito tempo, pois parecia ser capaz de perfurar as aparências e atingir o centro de seu espírito. Sua pele era bronzeada, e as rugas e marcas de cansaço em seu rosto demonstravam uma longa e difícil vida de trabalho ao sol. Sua expressão nesse momento era séria, fria, analítica, mas algumas marcas ao redor da boca demonstravam que aquele homem tinha a tendência de abrir largos sorrisos. Contudo, nenhum sorriso foi reservado para Paulo.

Na verdade, ninguém ali parecia receber o empresário com muita hospitalidade... até que, esquadrinhando o ambiente, Paulo Marinho avistou alguém que sorriu. Sentado em uma poltrona almofadada encostada na parede, afastada de todos no lado direito do salão, atrás da mesa do juiz, estava um homem elegante e o mais bem vestido e cuidado do tribunal - mais até que o próprio Paulo. Era um homem branco na casa dos seus 30 anos, de rosto arguto e nariz levemente pontudo, um terno preto impecável e alinhado que parecia mais caro que todo o tribunal, sapatos de grife que brilhavam de tão bem engraxados, uma camisa perfeitamente branca por baixo de paletó e cabelos negros brilhantes escovados para trás, sem um único fio rebelde projetando-se para fora. De pernas cruzadas, seu olhar encantador mirava diretamente os olhos de Paulo, e seu sorriso de dentes perfeitos era reconfortante, passava confiança. "Um homem de negócios", pensou ele, "o maior que já encontrei".

Mas a sensação de paz de ter encontrado um aliado no tribunal, um igual, foi cortada pela voz calma, porém autoritária, do homem sentado na cadeira de juiz.

- Senhor Paulo Gutierre Marinho Junior. Está pronto para começar?

Paulo fez muito esforço para quebrar o contato visual com o homem bem vestido no canto; seu olhar era, de algum modo, hipnotizante. Ele então voltou a encarar o homem sentando na cadeira de juiz, e contraste o fez expressar, novamente, seu asco. "Como esse sujeitinho sai de casa desse jeito?".

- Sim, estou, já passou da hora. E quem é você?

Silêncio no tribunal, com exceção de algumas risadinhas do júri. Sem esboçar reação, o homem disse:

- Seu povo me conhece como Jesus Cristo de Nazaré, Filho de Deus ou o próprio em personificação terrena da entidade tripartite, Reis dos Reis, Rei de Judá, Israel e das Nações, o Messias. Aqui, nesse momento, sou o juiz da audiência para determinar seu destino pós-morte.

Paulo não conseguiu conter a risada de escárnio. Não podia acreditar na audácia daquele homem.

- Você é Jesus? Sério? Você?

O silêncio, mais uma vez, tomou o tribunal. Finalmente, ele foi cortado por palmas de um único indivíduo: o sujeito bem vestido do canto. Com um sorriso de orelha a orelha, ele se ergueu e caminhou até o réu, com seus passos reverberando no salão. Sem protesto de ninguém, o homem bem vestido chegou ao lado de Paulo, que se sentiu reconfortado com sua presença. O homem elegante estendeu a mão, ao que Paulo retribuiu sem pensar e sentiu seu aperto forte.

- Bem - disse o homem elegante, com uma voz suave e exalando alegria - acho que é seguro assumir que você virá comigo. Mal posso esperar para te dar boas-vindas, meu caro Paulo. Gostei de você!

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