2 - Dimitri, o Novato

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 Até aquele ponto da história era difícil para o garoto dizer o que era ou não verdade, vindo da boca suja daqueles marujos. Ele não conseguia lembrar muito daquele dia, só das diversas versões modificadas ao longo dos anos que a tripulação lhe contou. Costumavam dizer que ele estava mais inconsciente que "marujo bêbado em terra firme". Por isso, confiem nas palavras escritas aqui, leitor. Eu lhe asseguro que é a pura verdade, a versão mais fiel desta história. Afinal, eu vejo tudo, portanto sei de tudo. Se alguma palavra aqui for mentira... que me matem.

5 de Novembro, 1543. Ano do Lobo Marinho.

35 graus Norte, 27 graus Leste. Depósito da Proa.

Dimitri foi acordar dois dias depois da grande tempestade, em uma cama fedorenta e esfarrapada, enjambrada em feno, dentro do depósito de proa do navio. O garoto abriu os olhos e analisou ao redor. O lugar não era muito grande e estava lotado de caixas e barris.

Onde..., pensou.

De repente, a figura de um homem alto e magro surgiu a sua frente. Seus cabelos eram bem aparados e sua pele pálida, debaixo dos óculos de lentes pequenas e retangulares. Vestia um sobretudo marrom e de costura com um bom acabamento. Até seus sapatos eram bonitos e engraxados. Na verdade, foi a primeira coisa em que Dimitri reparou naquela manhã. Tentou levantar com um impulso, mas o homem dos sapatos foi mais rápido e o empurrou de volta para a cama.

— Calma, menino. Você bateu a cabeça com força. Precisa descansar.

Com aquele movimento, o garoto sentiu a dor que o consumia e estremeceu. A sensação era de ter levado uma pancada com um taco de madeira. Sua cabeça latejava e todos os músculos de seu corpo ardiam de cansaço. Olhou para seu tronco, para seus pés e para suas mãos que começavam a entrar em foco. Era quase como se não reconhecesse a si mesmo. Foi quando percebeu que seu peito estava envolto por bandagens, assim como sua testa e seu braço direito.

— Onde eu estou? — perguntou.

Era estranho ouvir a própria voz como se não a reconhecesse ou não a usasse há um bom tempo. Estava rouca e fraca como se tivesse pegado um resfriado. Percebeu que o homem tinha alguns apetrechos metálicos em mãos. Pelo visto, era o curandeiro do navio.

— Você estava vagando sozinho em alto-mar. Nós o resgatamos do meio de um tornado dos grandes. Os deuses tiveram piedade dessa vez — brincou.

Mas Dimitri não queria saber sobre os deuses. Pelo contrário, estava mais interessado em saber sobre os humanos que comandavam aquela embarcação.

— Por que me resgataram? — perguntou.

As peças simplesmente não encaixavam em sua cabeça. Por que teriam se arriscado apenas para salvar sua vida quando nem o conheciam? Aquilo não era da natureza humana. Mas a resposta que o curandeiro deu em seguida, com certeza, não era o que o garoto estava esperando.

— Porque nunca deixamos um homem inocente morrer injustamente, Dimitri.

— O que você disse?

Dimitri estreitou os olhos em um conflito de emoções entre desconfiança e surpresa. O homem encarava-o por cima das lentes de seus óculos, o que dava a ele um ar intelectual. Seus olhos eram muito claros e queriam passar a sensação de segurança. Mas Dimitri não cairia nessa. Não...

Tem alguma coisa errada.

Aquilo era no mínimo intrigante, levando em consideração que o próprio Dimitri não lembrava de seu nome. O curandeiro soltou os aparelhos médicos metálicos e levou a mão até a gola do colete do garoto, que tentou se esquivar, mas não conseguiu. Ali podia-se ler perfeitamente o nome "Dimitri" estampado.

Nadia Keane -Parte Um: o Tesouro Roubado (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora