Responsabilidades

28 2 0
                                    

Por Gisinha Lima

Tudo que havia de ruim para acontecer em uma vida já havia acontecido. Ou pelo era assim que se sentia. Ao ver o próprio reflexo cansado na janela do avião, o rapaz pálido não imaginou o furacão deixava para trás em águas japonesas, ou mesmo o quão perto estava de alcança-lo.

Yukito Tsukishiro dormia desconfortavelmente na poltrona da classe econômica, as dores lombares fazendo-o ficar na mira de uma comissária de bordo nenhum pouco bem humorada que, a cada cinco minutos, senão menos, vinha até próximo de onde estava, lançava um olhar de soslaio, para logo em seguida voltar para seu lugar de sempre junto à colega. Será que pensava que ele era encrenca? O olhar sério novamente encarando-o de longe indicava que sim. O desconforto só não foi maior graças ao aviso do piloto comunicando os passageiros da aterrissagem. Um suspiro de alivio ajudou no processo de livrar o pobre rapaz do horror da vigilância daquela mulher horrível. Os outros passageiros, apesar de compartilhar seu desconforto, tinham lá suas razões para não demonstrá-lo.

Quando optara pela decisão de passar uns dias no apartamento da meia-irmã em Nova York e não a mais drástica (os quatro longos anos que ela muito sabiamente o fizera abrir mão), Yukito esperava com sinceridade por a confusão em sua cabeça de volta a mais perfeita ordem, e assim conseguir esclarecer as coisas com Sakura e o irmão, com quem realmente estava mais preocupado. Só que a viagem toda havia sido uma provação sem fim, já que a outra identidade – desesperada pra voltar, ou mesmo vir a público – não o deixou dormir um minuto sequer. O rapaz passou o voo de vinte horas totalmente desperto e quase a beira de um ataque de nervos caso aquela aeromoça antipática viesse abordá-lo outra vez. Assim que o avião aterrissou e todos se puseram de pé, o jovem marchou junto com os demais, a mochila enorme já no ombro, acertando por um triz uma mulher que vinha logo atrás. Os olhos claros brilharam de fúria, a mão pequena no queixo, que ele aparentemente atingiu ao levar a mochila às costas. Um homem truculento amarrou a cara para Yukito ao ver a situação.

- Presta atenção aí, rapaz! – e soltou um palavrão que fez ambos recuarem.

A descida foi igualmente estranha, talvez um pouco mais rápida do que gostaria, quando deu por si, o rapaz já estava no saguão enorme, um oceano de gente para lá e para cá, um verdadeiro empurra-empurra, totalmente diferente da Tomoeda pacífica e educada que sempre conhecera. Ainda que estivesse desembarcando em um dia de chuva, isso não justificava os passageiros quase o jogarem no chão do aeroporto, a atendente da companhia aérea que recebeu seu passaporte, o sorriso entre constrangido e irritado, o encarou, olhos se dividindo entre passaporte e portador, liberando o rapaz logo em seguida. Era o dia mais estranho que já tivera. Ou não, pelo que deu pra ver ao ser recepcionado. As coisas sempre podiam piorar.

No meio de vários passageiros, todos cautelosamente recuados, uma figura segurava uma placa de papelão deveras constrangedora com a frase "cara que deu o primeiro beijo, magoou a coitadinha e meteu o pé depois, pra piorar!" abrindo ainda mais o espaço no saguão. O rosto de Yukito ficou escarlate nesse instante, tornando o reconhecimento ainda mais desconfortável. Aquela era a não mais tão pequena Olivia. A última vez que a vira, tinha apenas 11 anos, o rosto cheio de sardas e o vestido branco de dama de honra que usava no casamento do pai com a mãe de Yukito, motivo pelo qual o rapaz optou por morar com os avós. Ele não gostava do novo marido da mãe, o sentimento sendo recíproco, a situação se tornando ainda pior com a animosidade quase certa entre ele e a nova meia-irmã, agora diante dele no saguão, os longos cabelos pretos soltos e brilhantes, um contraste gritante com a combinação de roupas esportivas, em um estilo gótico e o tênis de corrida que usava, a combinação deixando a garota confortavelmente despojada. Os olhos claros da moça, suavemente delineados com lápis e rímel preto, destacando o cinza claro, um efeito doce e invulgar, agora o encaravam, divertidos com a reação causada pelo cartaz de papelão.

O doce sabor da paixãoOnde histórias criam vida. Descubra agora