Penso que a modernidade seja um mal necessário. Ao mesmo tempo que detesto que meus cabelos fiquem com cheiro de fumaça, meu coração se acelera com a ideia de entrar no trem e chegar à capital. Com toda a ansiedade, combinada com a fuligem e o espartilho que apertava meus ossos, eu estava surpresa que ainda conseguia colocar alguma molécula de oxigênio para dentro, mas não importava. Dentro de exatamente uma hora, estaria de volta à minha amada Universidade, com todas as coisas maravilhosas que vinham com ela. Senti o mundo escurecer à minha volta e imediatamente olhei para cima, já sabendo o que iria encontrar. Um grande balão motorizado desfilava em cima da estação e deixava os caipiras, como eu, abobados. Sorri até sentir a luz do sol me obrigar a olhar para baixo. De todas as experiências que eu ainda tinha para viver na Universidade, voar em um daqueles era a que eu mais ansiava. Sabia que em algum momento dos próximos seis meses isso ia acontecer.
Um funcionário da estação, que vestia um smoking combinado com um grande cinto que abraçava toda a sua região torácica, ajeitou seu bigode enquanto subia em um palanque, de frente às pessoas que estavam ali. Se desculpou com todos pelo atraso da viagem e disse que o embarque começaria naquele momento. Olhei para meu relógio de pulso e me dei conta que nem tinha percebido o atraso. Me desloquei um pouco para trás, para deixar que os mais apressados se aglomerassem primeiro. Gostava de observar as pessoas, isso fazia me sentir como se eu olhasse minha própria vida de fora. Ou talvez assistindo um filme, o que era outra experiência que eu ainda não tinha vivido. A grande máquina de projeção tinha chegado a pouco tempo dentro do campus, e eu e minhas colegas estávamos contando os dias para visitá-la. Eu agradeci pelo dia não estar tão quente, e também pelo sol que fazia, isso faria com que a minha viagem fosse perfeita. Olhei uma criança levar bronca por não se comportar, uma idosa conferir seu bilhete exatamente três vezes e um casal apaixonado se despedir, com um deles entrando no vagão, enquanto o outro ia embora. Em algum momento durante a minha observação das pessoas, meus olhos haviam se concentrado em um homem na fila.
Ele não era tão alto. Seus cabelos negros estavam levemente penteados para trás, como se ele tivesse feito isso com os próprios dedos. Como se lesse meus pensamentos, ele passou a mão livre por eles. Se vestia de forma simples, mas elegante, e isso dava a ele uma aparência limpa. Ele era lindo, mas o que realmente me deixou fascinada foram os olhos. Eram puxados e da cor de carvão. E eles brilhavam mais do que tudo que eu já tinha visto. Em combinação com as sobrancelhas também pretas, sua expressão séria era firme e determinada. Ele entregou seu bilhete ao funcionário, que leu seu nome, mas eu estava longe demais para ouvir. Talvez eu devesse começar a enfrentar filas.
Quando ele entrou no trem, eu me dei conta que faltavam apenas quatro pessoas para embarcarem, contando comigo. Ergui minha bolsa pesada do chão e me apressei.
- Angelina Maria Campos? - o funcionário me perguntou. Franzia seu nariz o tempo todo, e eu tinha quase certeza de que ele ficaria bem mais confortável se tirasse aquele bigode gigantesco. Sorri para ele e assenti. - Precisa de ajuda com a mala, senhorita?
- Não, muito obrigada. Temos assentos marcados nessa viagem?
- Não, senhorita. Fique à vontade para se sentar onde quiser dentro do vagão.
Ele me desejou uma boa viagem e eu segurei minha saia rosa para subir as escadas. Eu achava que calças eram muito práticas e confortáveis, e as usava constantemente no dia a dia, mas eu também era refém de coisas bonitas e extravagantes e sempre gostava de usar um vestido bonito durante minhas viagens. Agradeci fervorosamente a mim mesma por isso quando vi que o homem de olhos pretos tinha um lugar vago ao seu lado. Ajeitei meu corpete marrom que estava por cima do vestido e me dirigi até ele.
- Com a sua licença, senhor. - eu disse, sorrindo.
- Fique à vontade. - depois de responder, me dando um sorriso de canto, ele se ofereceu para encaixar minha mala junto à dele.
Depois das devidas burocracias sociais, eu me sentei ao seu lado. Meu coração batia tão forte que quase bloqueava minha audição. Sim, eu já havia beijado alguns homens, mas eu ainda era tão experiente em romance, quanto uma formiga era experiente em voar. Eu havia prometido para a minha mãe, durante nosso jantar de despedida, que eu iria mudar e ser menos medrosa quando se tratava de indivíduos do sexo oposto. Isso arrancou sorrisos dela e de meu pai, que me respondeu que ansiava por uma carta minha contando que isso havia se concretizado. Infelizmente, nem eu mesma acreditava que enviaria essa carta nos próximos seis meses.
Quando consegui controlar a minha agitação, me abaixei e peguei um livro em minha bolsa, pensando que talvez pudesse me distrair. Dentro dele, se encontravam cartas de cada uma de minhas colegas, tanto de dormitório quanto de classe. A primeira que eu abri foi de Malu, com sua caligrafia elegante marcando o envelope com Marie Lu. Ela e Cecilia já estavam no campus havia uma semana, e era com elas que eu dividia um pequeno quarto no alojamento feminino. Malu contava que nossas máscaras para o baile de hoje já estavam prontas e que ela e Ceci iriam me esperar na estação. As outras cartas consistiam basicamente em minhas amigas demonstrando sua animação pelo baile. Festas que misturavam o dormitório feminino e masculino eram fortemente desencorajadas pelo diretório da Universidade, mas isso não impedia que o baile de máscaras acontecesse todo início de semestre.
Guardei as cartas novamente entre as páginas do livro e tentei me concentrar na história que eu tinha em mãos, mas a tarefa me parecia quase impossível, com o braço do homem ao meu lado encostado ao meu. Pelo canto dos olhos, vi que ele tinha em mãos o jornal diário, mas que não lia. Olhava pela janela, o que despertou minha curiosidade. Havia alguns minutos que tínhamos saído de um túnel comprido, e agora o trem passava por uma montanha que estava colorida por flores. O sol de fim de tarde completava a imagem mágica e era impossível não sorrir diante da imagem. Depois de um tempo distraída, percebi que o homem não olhava mais para a janela, mas sim para o meu rosto. Quando me virei, ele voltou rapidamente o olhar para a janela e começou a remexer nos botões de seu paletó. Senti minhas bochechas esquentarem e tentei esconder um sorriso.
Passei o resto da viagem ensaiando o que eu poderia dizer para ele. Talvez perguntar seu nome, ou se também iria para a Universidade. E ele insistia em mexer naqueles botões.
Decidi guardar o meu livro no momento em que comecei a ver as bicicletas motorizadas, com suas rodas de tamanhos diferentes. A movimentação de Constelação, combinada com as grandes árvores que a cercavam, lhe dava vida e faziam com que eu quase explodisse de animação. A Universidade era o coração da cidade, e ficava a alguns quilômetros da estação. Malu e Ceci diziam nas cartas que estariam lá quando eu desembarcasse.
Quando o trem começou a desacelerar, decidi que aquele era o momento de eu dizer alguma coisa, ou iria me arrepender pelos próximos seis meses. Me abaixei para pegar minha mala, e vi marcado K.T.H. na bela maleta do homem. Talvez essa informação fosse útil para mais tarde. O trem parou por completo e o funcionário gritou que o desembarque estava autorizado. Respirei fundo, me virei e bati três vezes no ombro do homem ao meu lado, que me olhou com aqueles olhos escuros, os quais quase me fizeram desistir.
- Acredito que o senhor seja uma das pessoas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida. - fiquei orgulhosa por não errar nem uma só palavra.
- Eu, senhorita? - perguntou ele, com uma vermelhidão lhe subindo às bochechas e um sorriso surgindo nos lábios.
- Sim. - não lhe dei tempo de resposta, pois minha coragem era extremamente limitada. - Adeus.
- Adeus. - o choque ainda estampava o seu rosto. E o sorriso também.
A mala não parecia mais tão pesada quando eu a ergui e saí apressadamente do vagão, respirando com dificuldade. Não olhei para trás e nem parei de andar até chegar a saída da estação. Foi quando eu ouvi uma voz feminina gritando meu nome. Minhas amigas estavam em frente à uma carruagem que estampava o símbolo do dormitório feminino, me aguardando de braços abertos. Depois de abraços e beijos apressados, nós três entramos na cabine. Olhei para fora uma única vez, na esperança de vê-lo, mas não aconteceu. O destino final dele poderia nem ser a Universidade. O pensamento me deixou triste, porém fiquei extasiada com a minha própria coragem. As coisas seriam diferentes. Talvez, no fim das contas, eu teria algo para contar na carta que enviaria aos meus pais.
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Constelação
RomanceA Universidade é o coração da cidade de Constelação, lar de uma sociedade justa e de avançadas tecnologias. E nela, histórias de amor, amizade e confiança são vividas por Angelina Maria, que, ao pegar o trem de sua cidade natal para mais um semestre...