Sagrado

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New York City, USA.

Antes.


A neve caía lá fora suave como a sinfonia que invadia meus tímpanos. A música fazia minha mente meditar. A dança fazia meu corpo revigorar. Minha alma estava em transe. O êxtase da vida me possuía. Meus pés saltavam, giravam e rodopiavam instantaneamente no piso amplo de linóleo, no centro do salão, seguindo o ritmo da sonata de Mozart, tocada no piano. Me sentia um imortal. Invicto. O herói que na verdade era uma farsa. Minhas mãos bailavam acompanhando o ritmo que meus pés manobravam. Estava em meu mundo surreal. Imaginário. Até que em algum momento meus pés não sustentaram mais a dor que o meu corpo suportava. A minha face perdeu o encanto e a beleza da alegria. Perdeu a serenidade e o sorriso. A expressão de dor fez meus dentes rugirem com fúria, uma fúria que consumia meus olhos e transbordava em lágrimas. E de repente estava tão fraco e indefeso. Jogado no chão. Solitário. Preso em minha própria mediocridade.


A grama verde era macia como um tapete. Amortecia os meus passos firmes e circulares. O meu ser interior era leve como uma pluma. Minha mãe corria atrás de mim. Seus cabelos ao vento. Com sua majestosa energia. Como eu a amava. E sabia o quanto ela me amava. E de repente senti seu abraço apertado que me acolheu com plenitude. A intensidade de um amor maternal é indecifrável. Caímos no chão. Rodopiávamos. Gritávamos em sorrisos a nossa felicidade. Aquela felicidade verdadeira, que nasce das coisas simples e dos momentos inesperados. O sol se foi, o calor adormeceu e a chuva caiu. Forte. Uma verdadeira tempestade. As gotas grossas caiam sobre minha costa nua com fúria. Pareciam chicotadas. Fazia frio. Procurava o calor do meu corpo com os meus braços. Estava sentado na beira da piscina. Mais uma vez sozinho. Suportando minha dor.


A ciência diz que o câncer, que extermina sempre alguém da geração de minha família materna, é hereditário. Eu costumo dizer que é uma praga. A doença levou minha avó, minha mãe e agora quer me levar. Meu pai já previa que isso poderia acontecer. Todo ano me levava para fazer uma bateria de exames no consultório do doutor Joseph Godoy, um médico-cientista que recebia recursos financeiros de nossas empresas, para elaborar pesquisas que pudessem descobrir a cura dessa doença. Em cada consulta sempre fazia uma sucessão de exames laboratoriais. Uma amostra de meu DNA era recolhida anualmente e ficava guardada em conserva. A ideia era utilizar algo mais à frente, como regeneração celular ou coisa assim, diante da pré-disponibilidade de adquirir o maldito câncer extremamente raro. Esse dia chegou e as pesquisas não estava prontas. As várias tentativas foram todas falhas.


Os meus olhos admiravam o meu reflexo em frente ao espelho do banheiro. Minha boca sussurrava "você vai morrer Benjamim", incansavelmente. O que fazer quando você recebe um diagnóstico dizendo que sua vida chegou ao fim? Chorar eu já chorei. Gritar eu já gritei. Mas ainda não vivi. Não intensamente. Não naturalmente. Não o necessário. Estava farto de regras. Cansado de cuidar de mim. Tanta proteção só me aprisionava enquanto na verdade eu estava desprotegido o tempo todo. Era um meteoro que além de me auto destruir, levaria auto destruição a tudo em minha volta. Em vez de chorar, eu sorri. Em vez de quebrar o espelho que estampava a verdade em minha face, retirei-me dali. Não eram rosas agora, apenas espinhos. Eles me feriam por dentro. Rasgavam minhas entranhas corroendo tudo que tinha de bom. A música e a dança eram meu álibi. Minha salvação. Precisava da dança, mas até onde poderia continuar de pé? Não por muito tempo.


O piano estava ali, assim como eu, solitário, na sala grandiosa do apartamento. Me chamava ao seu encontro. Eu fui até ele e me entreguei como um homem se entrega à mulher amada. Inteiramente. De corpo e alma. No início era paixão, mas agora não, agora é amor. Sempre acontece assim. É a regra geral. Não podia ser diferente. Sentei-me no banco e abri a caixa de teclas. Alonguei lentamente os dedos e comecei a martelar-las levemente. No momento não pensei no que tocar. Deixei fluir. Deixei minha emoção se expressar. A música era uma parte de mim. Uma parte boa que não estava podre como todo o resto. Nem vi quando meu pai chegou com sua forma sutil de ser. Leu meus sentimentos naquela canção. Estava triste assim como eu, tenho certeza, mas ele era turrão e adorava passar imagem de invencível. Ele dificilmente era vencido. Tinha poder, dinheiro, tinha tudo que a vida poderia lhe oferecer. Só não tinha o controle do inevitável. Não era Deus apesar de as vezes brincar de ser ele. Não poderia salvar o que estava destinado a morrer. A morte vai muito além de tudo. Além de todos. É o fim. Ou quem sabe apenas um recomeço.

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