Ouço a água suave alçando levemente meu corpo relaxado sobre a prancha de surf, enquanto pássaros fazem revoadas aos seus ninhos, protegendo-se da noite que se aproxima. O sol é alaranjado e reflete sob a água esmeralda, à medida que outros aventureiros, extasiados demais, admiram embevecidos o espetáculo natural.
Hoje não tivemos ondas aqui na Tailândia, uma situação atípica, mas apesar disso o dia fez-se de grande valor para jovens exploradores como eu. Dezoito anos e livre das amarras dos “Monroe” pela primeira vez na vida, meu desprendimento me faz pensar que se chover e eu tiver que bater papo com a senhora Sinn, dona da pousada em que tenho vivido meu período sabático, ainda assim ficarei feliz.
Eu praticamente fugi para esse lado do mundo assim que terminei o colegial, dando-me a chance de pensar, e para a loucura completa da minha mãe, já cogitei me juntar ao esposo de Sinn e tornar-me pescador. Não, isso não é verdade. A pesca não tem desafios, e apesar de amar esses pequenos momentos etéreos, eu sou apaixonado por desafios. Gosto da magia de desvendá-los.
E é exatamente nesse ponto que reside a minha sina. Minha família e a sociedade Nova Yorkina espera que eu seja mais um Monroe gênio da medicina e filantropo das muitas fundações espalhadas no país e no exterior. Esperam que eu seja a nata da sociedade, com súditos fiéis resolvendo meus problemas.
Uma vida fácil. Sem desafios, emprego garantido e um sobrenome que crava em mim um selo de qualidade que eu não conquistei. Pode parecer choramingo de herdeiro, mas eu assisti exatamente o que acontece quando apenas cumprimos o plano perfeito que traçaram para nós. Eu vi como a chama foi se apagando lentamente no seio da minha família, quando meus pais deixaram de cumprimentar-se, quando o meu irmão passou a agir como um zumbi, mas, diante de todos, a perfeição era visível.
Henry Monroe, meu irmão, daria continuidade ao legado, ao sobrenome e a infelicidade, e esse plano que insistem chamar “meu destino”, eu não quero. Sempre acreditaram que eu herdaria tudo sem questionar, mas, bem, eu agora estou sob o sol da Tailândia. Entreguei-me à liberdade do caos para decidir meus próximos passos.
Saio da água e me jogo na areia clara, acompanhando o anoitecer, apreciando o encontro dos últimos raios com a água, quando passos se aproximam de mim.
— Hipnotizado? — Um senhor barbudo, baixinho com uma mochila velha, se aproxima e indico que pode se sentar comigo. Acredito que seja morador local, a pele queimada de sol indica que é, provavelmente, um pescador. Seu inglês é complicado de compreender, mas me esforço.
— Vocês têm um dos melhores — respondo, apontando para o sol.
— Ele está em toda parte. Provavelmente você não prestou atenção enquanto ele brilhava lá na sua terra. Mas, aqui é diferente ainda assim.
— Ou é o mesmo, ou não é — afirmo sucinto.
— Pensamentos simples, meu jovem. Você é muito novo ou muito surdo para não ouvir.
— Exatamente o que eu não ouço? — Cogito correr, pois pode ser apenas um homem insano que irá me destrinchar como um dos seus peixes. Ele parece perceber minha intenção e se põe a rir.Doido.
— Não vou matar você, rapaz. Corto peixes, mas apenas aqueles que são peixes no todo.
— No todo? Algum por aí não tem barbatanas? — Cristo, o homem deve ter distúrbio. Será que se perdeu da família e agora busca desavisados para falar de peixes pela metade e da surdez alheia?
— Todos têm, não fale besteira! — Indignado, ele torce o nariz. — Mas, eu não mato aqueles que são... — olha ao redor como se fosse me contar o número premiado da loteria — aqueles, você sabe? Meio humanos!
Birutinha.
— Eu preciso ir... — começo a me levantar.
— Ah! Finalmente! Ouça! — Faz sinal de silêncio.
— Não ouço nada.
— Exatamente! Quando o mar faz silêncio, as sereias se calam.
— Sereias?! — Ok, talvez a medicina seja mais importante do que eu imaginei. Talvez eu precise cogitar a psiquiatria e entrar no Médico sem Fronteiras. O homem de barba e cheiro de peixe precisa de atendimento.
— Sim! Elas pararam de cantar, pois estão muito cansadas de entoar seu canto aos surdos. Estão aí há muito tempo... desde quando foram capturadas por desbravadores ou caçadores de tesouros que navegaram nesses mares — inclina o queixo para frente assinalando o mar. —. Às vezes, elas cantam buscando a ajuda de marujos mais corajosos. Mas, meu jovem, há poucos corajosos hoje em dia. Muito poucos! Elas sabem disso, e quando se cansam, pedem ajuda em silêncio.
— Silêncio? — Balanço a cabeça, sacudindo os cachos, afugentando areia e ideias absurdas. — Quer ajuda para ir para casa?
— E os poucos corajosos são surdos e não prestam a atenção, como você. — Crítico, ele me olha. — O silêncio acontece quando estão prestes a desistir. —Suspira em lamento e juro que já o imagino velando as sereias cativas. Começo a cogitar se a água gelada resolve o problema do velho homem que surgiu sem querer no meu caminho.
— O silêncio é porque parou de ventar. Sabe, a física da coisa... venta, temos ondas e pronto! É apenas uma coincidência os ventos cessarem, coisas da natureza e tenho certeza de que... até as sereias sabem disso. O vento parar agora foi uma coincidência. — A natureza compactuando com a sandice é totalmente sem querer, apenas ele não percebe.
— O destino está escrito, nada é sem querer.
Paraliso e fico piscando. Ou ele é clarividente ou eu disse isso em voz alta. Sim, perdi o filtro e chamei o doido de doido em alta voz. Certamente é isso ou o sol tomou a todos nós e agora estamos falando sobre o reino imaginário de Atlântida.
— Nós o fazemos. Céus, não vou discutir filosofia agora e...
— Não, nós escolhemos os caminhos, mas todos levam a ele, ao destino. Pode lançar ao inesperado qual caminho você irá percorrer, mas ele inevitavelmente te levará para onde você deve estar. Você deve salvar a sereia.
— A muda do mar?
— Ela fala bastante, mas saiba ouvi-la, pois ela pede socorro em silêncio. Você está esquecendo dos detalhes importantes e eu não vou repetir!
— Oookay. — Se eu sair rapidamente, ele nem deve perceber.
— Tome. — Ele me estende um totem feio feito de uma pedra vermelha. É esférico, mas muito bem talhado. — Phra Nang . Dizem que a caverna de pedra vulcânica é onde mora uma deusa sereia. Essa pedra aí veio de lá. — Indica o objeto que me encara. — Ela era esposa de um velho curandeiro que se perdeu e jamais voltou para acudir o chamado da sua amada quando capturada por piratas.
— Morreu? — Jura, James? Curioso com lenda de pescador?
— É a sereia que ouvimos quando há o bramido do mar. Um marujo a salvou, apesar de ser ele contra todos e arriscando a sua vida. Foram felizes, rapaz. Mesmo ele sendo da terra e ela do mar. Ele ouviu o seu pedido de socorro, viu quando ela praticamente se afogava em seus silêncios, as palavras impedindo-lhe o fôlego... o encontro da terra e do mar é real, rapaz. Muito real!
— E o que isso tem a ver com o destino?
— Esse aí é o seu. — Ele aponta para o totem vermelho e sorri, como se tudo fizesse sentido.
— A pedra?
— A pedra. É uma boa pedra. Você veio decidir o que fazer com o seu e eu estou facilitando tudo te entregando literalmente em suas mãos — responde como se eu fosse um imbecil.
— O senhor é uma espécie de profeta fanático religioso? — Não deveria ser tão direto, mas, convenhamos, é uma pedra!
— Eu?! Imagina! Sou apenas um velho marujo! — Ele me dá uma piscadela e se levanta como se não tivesse dito meia dúzia de bobagens. — Não se esqueça. Foi o marujo quem deu a voz e a salvou de afogar-se em seus silêncios. Nunca foi o curandeiro. Você deve ouvir os silêncios! — O velho pescador com ares de profeta bruxo se vai, como se levado pelas próprias ondas que agora voltam a serem sopradas pelo vento.Como se as sereias tivessem voltado a cantar.
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ACORDO INESPERADO - SÉRIE DESTINOS - LIVRO 2
RomanceDEGUSTAÇÃO LANÇAMENTO COMPLETO EM BREVE, APENAS NA AMAZON KINDLE. Fake dating - Hot - Enemies to lovers - Imigração - Cartel - O que você faria para proteger o que mais ama? Ela é a imigrante ilegal que foge do seu passado. Ele é o advogado implacá...