Esposas Infiéis

11 0 0
                                    

Dizem as crônicas dos Sassanidas, antigos sobe ranos da Pérsia, ter existido ali um rei que, graças a sua sabedoria, foi muito amado por seus vassalos e, graças a sua coragem, temido pelos vizinhos.
Esse rei tinha dois filhos, sendo Shariar, o primogênito, e Shazenan, o mais jovem. Após longo e glorioso reinado, o rei morreu, e Shariar subiu ao trono. Shazenan, posto numa situação de inferio ridade, nem por isso invejou a sorte do irmão, dispondo-se a tudo fazer para agradá-lo.
Feliz com a atitude do irmão, Shariar quis lhe dar provas de sua satisfação, cedendo-lhe o reino da Grande Tartária, cujo trono Shazenan ocupou, fixando residência em Samarcanda, que era a capital daquele reino.
Dez anos se tinham transcorrido desde que os dois príncipes se separaram, quando Shariar sentiu saudades do irmão e enviou um embaixador com um convite para que viesse visitá-lo. Shazenan aceitou o convite e começou a tomar as providencias para a viagem. Nomeou um Conselho que governaria na sua ausência e, pouco antes da partida, foi despedir-se da esposa, já tarde da noite. Chegando ali sem avisar, surpreendeu-a nos braços de um de seus criados. Cego de ira, desembainhou a espada e deu morte tanto à esposa quanto ao amante dela. Em seguida, partiu com seu séquito ao encontro do irmão.
Shariar o recebeu às portas da capital e, depois de tê-lo coberto de carinhos e presentes, levou-o para um palácio próximo ao seu e a ele ligado por um jardim. Passaram o resto do dia e a noite conversando até o momento em que Shazenan, cansado da viagem, manifestou vontade de recolher-se para dormir. De fato, não conseguia parar de pensar na traição que sofrera e na vingança que fora forçado a praticar. Não passou despercebido a Shariar a sombra de tristeza que toldava o olhar do irmão. No dia seguinte, providenciou exibições de danças e música para alegrá-lo, mas este, no entanto, sentiu-se mais deprimido ainda. Finalmente, Shariar programou uma caça da, certo de que com isso distraíria o irmão. Shazenan, porém, alegando indisposição, preferiu não participar da caçada.
Mal o dia raiou, Shariar partiu para a caçada com seus vassalos. Foi então que Shazenan, chegando à janela de seu quarto, deparou com uma cena que o surpreendeu: por uma porta secreta do palácio, surgiram vinte mulheres que rodea vam a sultana, esposa de Shariar. Esta, julgando que Shazenan também havia ido caçar, chegou com suas acompanhantes até próximo à sacada dos aposentos deste. Ali despiram-se de toda a roupa, revelando-se então que só dez eram mulheres: os outros integrantes do grupo eram robustos mouros que se dividiram em casais e se afastaram em distintas direções. A sultana abraçou-se a um dos homens e os dois sairam de mãos dadas para um canto reservado do jardim.
Chocado com o que acabara de ver, Shazenan compreendeu que a desgraça que o atingira era mais comum do que pensava. Isso serviu para levantar-lhe o animo, tanto assim que, quando o sultão voltou da caçada, surpreen deu-se com a melhora do irmão, agora bem mais disposto. Foi então que este decidiu contar-lhe a causa da tristeza que o abatia quando ali chegara.
Shariar aplaudiu a atitude do irmão dando o merecido castigo aos que o traíram e quis saber também a causa de sua súbita recuperação. Shazenan hesitou em dizer-lhe a verdade mas o irmão insistiu.
-Temo causar-te maior sofrimento do que o que me atingiu.
-Essas palavras só fazem aguçar minha curiosidade falou Shariar.
Foi então que Shazenan contou-lhe o que presenciara no jardim do palácio. O sultão não quis acreditar no que ouviu, considerando que talvez o irmão se tivesse engana do. Poderiam ser outras pessoas. Shazenan sugeriu então que o sultão anunciasse que faria outra caçada e, ao invés de partir, se escondesse em palácio. Isso foi feito e, na manhã seguinte, depois que os séquitos dos principes partiram para a caça, de novo a porta secreta do palácio se abriu e os mesmos personagens, inclusive a sultana, invadiram o jardim. O sultão a tudo presenciou estupefato.
Diante de tamanha decepção, Shariar disse a Shazenan:
-Irmão meu, estou horrorizado. Jamais imaginei que minha esposa fosse capaz de semelhante infâmia. Já que foste vitima da mesma traição, proponho que renunciemos ao mundo. Abandonemos nossos reinos e toda a pompa que nos rodela. Mudemo-nos para uma terra estrangeira onde possamos viver como pessoas comuns e assim esquecer nossa infelicidade.
     Ao que Shazenan respondeu:
 -Estou disposto a seguir-te, querido irmão, mas tens que me prometer uma coisa: desistiremos dessa renúncia se encontrarmos alguém que seja mais infeliz do que nós.
-Prometo, garantiu Shariar.
     Sairam secretamente do palácio e tomaram por um caminho que os conduziu a um espesso bosque, povoado de árvores frondosas à borda do mar. Sentaram-se sob uma das árvores para descansar quando ouviram um barulho vindo das ondas seguido de um grito de terror. Em seguida, as águas do mar se abriram e delas surgiu uma coluna de fumo negro que parecia chegar ao céu. Os dois apressaram-se a subir numa árvore para melhor observar o que se passava e verificaram que a coluna se aproximava lentamente da praia. Tratava-se na verdade de um daqueles gênios maléficos que odeiam os homens. Negro e horroroso, tinha o aspecto de um gigante descomunal e levava sobre a cabeça uma grande caixa de cristal com quatro fechaduras de fino aço.
     Penetrou no bosque com sua caixa e foi depositá-la ao pé da mesma árvore onde estavam trepados os dois principes que, àquela altura, julgavam-se perdidos, já que tinham plena consciência do perigo que corriam.
     No entanto, o gênio se sentou no chão de terra e abriu a caixa, de onde saiu uma linda mulher ricamente vestida. Fê-la sentar-se a seu lado e, olhando-a com ternura, lhe disse:
   -Mulher de extraordinária beleza, graciosa criatura a quem roubei no dia mesmo de suas bodas e a quem tenho amado com paixão, permites que descanse um momento a teu lado?
     A jovem sorriu e o génio deitou-se no chão apolando no regaço dela a enorme cabeça e logo adormeceu. A mulher então ergueu os olhos e, vendo os principes no alto da árvore, lhes fez sinais para que descessem. Eles a obedeceram e quando chegaram embaixo, ela os tomou pela mão, embrenhou-se com eles no bosque e lhes exigiu algo que não puderam negar-lhe. Satisfeitos seus desejos, viu que ambos levavam anéis em seus dedos e pediu que cada qual lhe desse um. Também nisso os príncipes não se ao capricho da moça, que juntou os dois anéis a uma fieira de outros tantos que trazia escondida sob a blusa. E falou:   
   -Sabeis o que representam estes anéis? Significam que cada de seus donos gozou de meu afeto, como acabastes de fazer os dois. Aqui havia noventa e olto e agora, com os que me deram, completo os cem. Uma centena de amantes que tive até agora, apesar das precauções e da vigilância deste gênio, que não se separa um instante de mim. De nada adianta me fechar numa caixa de cristal nem me ocultar no fundo do mar, pois sempre encontro um modo de enganá-lo. Quando uma mulher decide fazer uma coisa não há marido nem amante que o impeça. Mais valeria que os homens procurassem não contrariá-la, pois este seria o único meio de mantê-la discreta e fiel. - Dito isso, guardou os anéis e voltou a sentar-se sob a árvore, repondo em seu regaço a cabeça do gênio. Os dois principes afastaram-se dali.
  -Que me dizes do que acaba de ocorrer?- falou Shariar ao irmão. -Deves admitir que nada se iguala à malicia das mulheres!
  - É verdade- respondeu Shazenan. - e hás de concordar comigo que o gênio é mais digno de compaixão emais desgraçado do que nós.        
  -Certamente.
  -Então voltemos a nossos reinos, conforme combinamos.
  - Sim, voltemos - admitiu Shariar. - De minha parte, te garanto que encontrei um meio de impedir que minha esposa me seja infiel. Estou certo de que, quando souberes como agirei, seguirás meu exemplo.
     Logo empreenderam a viagem de volta. Ao chegar ao palácio, Shariar ordenou que a esposa infiel fosse executada e, não satisfeito com isso, deu morte pessoalmente a todas as mulheres que formavam a corte da sultana. Depois dessa vingança cruel, e persuadido de que não havia mulher alguma de cuja fidelidade pudesse estar seguro, decidiu que casaria cada noite com uma mulher que seria morta ao alvorecer do dia seguinte.
    Promulgada esta bárbara lei, o sultão mandou seu grão vizir trazer-lhe a filha de um general de seu exército, com quem se casou. Na manhã seguinte, ordenou ao vizir que a estrangulasse com suas próprias mãos, e lhe trouxesse outra esposa para aquela mesma noite.
     Esses atos cruéis espalharam a consternação em todo o reino e, em vez dos elogios e bênçãos que os vassalos costumavam fazer ao sultão, agora o amaldiçoavam e lhe desejavam a morte.
     O grão-vizir, que contra a vontade tornara-se o executor dessas crueldades, possuía duas filhas, sendo que a mais velha se chamava Sherazade e a mais nova. Dinarzade. Esta, não menos bela que a irmã, não possuia a coragem, a esperteza e o discernimento de que aquela era dotada.
     Sherazade havia lido muito e tinha uma memória prodigiosa. Havia estudado medicina, história, belas-artes e compunha versos muito melhor do que alguns poetas célebres de seu tempo. Além disso, sua beleza era perfeita e seu coração só abrigava sentimentos nobres e generosos. O vizir amava loucamente essa filha que, um dia, lhe disse:
   -Pai, concebi um plano para por fim às barbáries que o sultão vem cometendo com as filhas de familia.
   -Filha, teu propósito é digno de elogio, mas o mal que queres remediar não tem cura disse-lhe o pai.
   - Pai, como sois vós que a cada noite tendes que levar ao sultão uma nova esposa, pedi a ele que me conceda essa honra.
   -Perdeste o juizo, filha? Como tens a insensatez de me fazer semelhante pedido Sabes a que perigo te exporás?
   -Sim, pai, sei muito bem a que perigo me exponho. Se morrer, minha morte será gloriosa; mas, se conseguir atingir meu objetivo, terei prestado um grande serviço a minha pátria.
   -Não - disse o Grão-vizir, -é inútil insistires, pois
não farei o que me pedes.
   -Por favor, pai, será a última graça que vos imploro.
   - Vais terminar por me aborrecer com essa tua insistência- respondeu o vizir. - Por que desejas ir ao encontro da morte certa? Escuta: quem não é capaz de prever as conseqüências de uma iniciativa perigosa não deve meter-se nela. Pode te suceder o que sucedeu com o asno, que estava muito bem de vida e não soube se contentar com sua sorte.
   -Que sucedeu com o asno, pai?- perguntou Sherazade.

  -Escuta e já o saberás.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Oct 18, 2022 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

As 1001 Noites Onde histórias criam vida. Descubra agora