▪️I - Resquícios▪️

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Dizem que teremos três amores na vida: o primeiro, é o amor inocente, aquele que nos apresenta a esse novo sentimento e que nos faz se sentir estranhos, mas que irá passar e nunca esqueceremos; o segundo, é aquele mais intenso e avassalador, que nos deixa perdidos e sem chão, normalmente é o que mais nos machuca e nos tira daquele conto de fadas, fazendo-nos abrir os olhos e fechar o coração, jurando a nós mesmos que nunca mais iremos nos apaixonar novamente. Já o terceiro, é aquele que nos pega de surpresa, que chega sem aviso para acabar totalmente com nossos planos de nunca mais nos abrir para ninguém. É aí que percebemos que estamos amando novamente e que esse amor não é como os outros, pois este nos deixa leves, confortáveis, seguros e felizes.
Se esse ditado era real eu não sabia, porém, se fosse, então eu já tive esses três amores em apenas 20 anos de vida e havia perdido todos. Eu, absolutamente, não encontraria um quarto amor e, também, não estava nem um pouco a fim de ter. Tinha apenas 12 anos quando amei um garoto pela primeira vez. Ele era o novo morador do bairro e todas as meninas de lá ficaram interessadas nele, porém, nunca deu bola para nenhuma delas, inclusive a mim. Exceto uma... Emily sempre foi muito linda, sua beleza e jeito misterioso nunca passaram batidos, fazendo com que os garotos gostassem dela facilmente. Mas minha irmã não gostava de ser paquerada, era muito fechada para romance e não deixava que ninguém cruzasse sua linha do coração, costumava dizer que tinha outras coisas com que se preocupar e não precisava de homem em sua vida para atrapalhar tudo. Contudo, infelizmente, ninguém manda no coração e ela acabou se encantando por Damien meses depois, quando o mesmo quase a atropelou de bicicleta, a qual havia perdido o freio.
Desde então, os dois passaram a conversar mais e ele começou a frequentar nossa casa. Nossos pais morreram em um acidente trágico de avião quando éramos muito novas, Emily tinha 15 anos e eu doze. Ficamos órfãs prematuramente, então tivemos que ficar em um abrigo porque não tínhamos nenhum parente próximo; saímos de lá assim que Emily alcançou os 18 anos, pois já havia conseguido um bom emprego, e assim conseguiu minha tutela. Por isso ela não queria se apaixonar por ninguém, pretendia apenas se dedicar aos estudos para ser policial, ao trabalho e a mim, porém, quase nunca as coisas saem como planejamos.
No fim das contas, Damien nos ajudou muito e minha paixonite infantil por ele esvaiu-se aos poucos, principalmente quando seu primo se mudou para lá também. Aquele garoto de rosto angelical, dono de belos e ondulados cabelos dourados e olhos tão verdes quanto águas cristalinas, me deixou caidinha assim que fomos apresentados. Foi paixão à primeira vista. Não sabia exatamente o que havia me atraído tanto em Ryan. Talvez fosse pelo seu semblante misterioso e olhar penetrante, talvez pelo formato retangular de seu maxilar, pela pinta que ele tinha acima da boca, a coloração rosada de seus lábios, sua voz doce e firme... talvez tudo isso tenha sido responsável pelo aceleramento instantâneo do meu coração e pelo tremor de minhas pernas, que vieram juntamente com uma falta de ar nervosa que se fazia presente toda vez que aquele garoto se aproximava de mim.
2 anos e meio depois, enquanto estava feliz em meu namoro com Ryan, o casal que eu tanto admirava parecia estar em crise e não era mais o mesmo. De repente, o clima entre eles passou a ficar pesado e eu não sabia nem o porquê, Emily nunca foi de falar detalhes sobre sua vida, nem mesmo para mim, e só fui saber o que estava acontecendo quando escutei algumas vizinhas - as quais sempre os invejaram - conversando entre si, em tom nada discreto, sobre a partida de Damien para uma cidade distante. É isso mesmo... Damien estava partindo para longe e, naquele momento, tudo passou a fazer sentido para mim. A relação deles havia chegado ao fim.
Foi muito difícil para Emily superar essa perda, mas ela era forte e, como sempre, conseguiu se reerguer sentimentalmente e começou a pensar que tudo foi como deveria ter sido; e que se algum dia ambos se reencontrassem e o amor deles ainda existisse, poderiam tentar ficar juntos novamente. Ela compreendeu que aquele belo e jovem homem pelo qual era tão apaixonada, precisava seguir seu caminho para realizar seu sonho, assim como a mesma realizou os dela. E foi o que ele fez.
Minha irmã sempre foi muito firme e sensata, dificilmente tomava más decisões ou formava uma opinião errada sobre alguém; já eu, era literalmente o oposto dela e tudo o que mais fazia era tomar decisões erradas. E uma delas foi ter me relacionado com Ryan. Nos primeiros meses era tudo uma maravilha, mas com o passar do tempo isso foi mudando e ele não era mais aquele cara gentil e atencioso como antes. Ele me tratava com ignorância, certas vezes sem necessidade alguma e fazia inúmeras chantagens emocionais para que eu me sensibilizasse e acabasse fazendo o que queria. Ryan me manipulava e moldava à sua maneira, me tinha na palma de sua mão como um fantoche e eu não enxergava isso. Nem mesmo com os alertas de Emily, a qual jamais escondeu seu real julgamento sobre Ryan e nunca mediu esforços para isso. Contudo, ela não interferia; apenas aconselhava, pois a vida era minha e o namorado também, então eu mesma que deveria abrir os olhos e tomar as devidas providências. E foi o que fiz.
Foi em Bellír que conheci um homem que realmente se importava e gostava de mim. Eu também gostava dele, apesar do jeito rígido e grosseiro de ser, havia me apaixonado por Bryan de maneira intensa em tão pouco tempo, mas, infelizmente, nosso romance começou em meio a uma infestação zumbi e terminou após me mostrar sua perna mordida por uma criança infectada quando estávamos naquela creche. Meu coração se partiu em zilhões de pedaços, senti como se o céu houvesse caído sobre minha cabeça; e o chão, afundado sob meus pés. Depois de Bryan, não me envolvi ou me interessei por mais ninguém, me sentia incapacitada de amar alguém novamente e, além disso, tinha outras questões as quais ocupar a mente.
Mesmo após termos sido resgatadas em alto mar por militares navais 3 meses atrás, Jessika e eu não havíamos superado quase nada ainda, pelo contrário, adquirimos traumas e fobias. Jess não conseguia mais ver nada relacionado a mortes brutais e sobre bebês, tinha crise de choro e surto toda vez que se lembrava do filho de Xavier que havia perdido de forma espontânea pouco antes de completar 1 mês de gestação. Já eu, não conseguia ficar de costas para portas e janelas, tanto abertas quanto fechadas, e tinha pesadelos todas as noites. Isso foi amenizado com a ajuda de medicamentos tarja preta e terapias, porém ainda era difícil ter uma noite de sono tranquilo.
Nós duas fomos bem acolhidas e recebemos tudo de graça, desde os tratamentos psicológicos até a moradia, porém não iam nos deixar a tôa. Há, praticamente, 1 mês e meio, estava trabalhando como garçonete numa cafeteria pequena, mas badalada, que ficava próxima ao centro. Foi lá que consegui ocupar minha mente com outras coisas e onde fiz amizade com Alexandria, a balconista. Apesar de ser meio doida das ideias, a ruiva era legal e muito alto astral, tanto que às vezes me irritava quando eu não estava num dia muito bom. Ela era o tipo de pessoa que sempre te dava os melhores e mais loucos conselhos, além de fazer questão de mostrar que não levava desaforo para casa. Certo dia, Alexa se irritou com uma cliente arrogante que jurou ter pagado a conta antes de comer, sendo que tudo ficava salvo no sistema e nada constava, a mulher ficou fazendo escândalo e arranhou o rosto da minha amiga com aquelas unhas enormes de acrigel. O que Alexandria fez? Simples, cerrou o punho e deu um soco forte em seu nariz, fazendo-o sangrar no mesmo instante. Ambas foram parar na delegacia e eu, junto com as demais pessoas presentes lá, ficamos o resto do dia dando depoimento. Por fim, ninguém foi preso, mas a mulher foi obrigada a pagar o valor dos alimentos que consumiu na cafeteria, além de uma boa multa pelo tumulto que causou e pela agressão, nunca tinha visto Alexa tão feliz por ter se estressado com um cliente.
Meu cotidiano havia se tornado normal como antigamente, contudo, eu nunca mais voltaria a ser como alguém comum. Afinal, como poderia depois de tudo que passei? Estava tão acostumada com a adrenalina de lutar dia e noite para sobreviver, que, quando não precisei mais fazer isso, senti falta. Era como se tivesse se transformado num vício, do qual meu corpo sentia falta, e algo dentro de mim precisasse ter aquilo novamente ou entraria em colapso. E no lugar disso, entraram os traumas e fobias.
Com o tempo fui me acostumando a ter uma vida normal, mas ainda me sentia como se não fizesse parte daquilo. Quando Jessika e eu assistimos ao bombardeio de Bellír pela televisão, senti algo estranho; um aperto no peito e de repente comecei a chorar. Não sabia o porquê de ter ficado daquele jeito, mas eu não fui a única a sentir. Jess me abraçou e, enquanto ouvíamos os sons das explosões e a voz do repórter ao fundo, lágrimas de dor, saudade e vários outros sentimentos inexprimíveis transbordavam de nossos olhos. Juntas, vimos tudo ir para os ares e virar pó.

INFESTAÇÃO: Restaurados (Vol. 2)Onde histórias criam vida. Descubra agora