Correntes e Laços

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Quando tintila a corrente no meio da noite, eu lembro que tenho um cão.

Anúbis é um dobermann preto, forte, de pelagem brilhante. Como eu, é muito quieto, nem mesmo se incomoda com o barulho das crianças que moram na casa da frente. Deita-se na grama, vigiando o pátio com seus olhos de uma escuridão profunda, fazendo reflexo dos pés que pisoteam a calçada.


  O cachorro só tem comportamentos anormais em situações específicas. Se há alguém desconhecido tentando entrar em casa, ele late muito. Um incidente me fez comprar uma placa de "Cuidado! Cão bravo." Anúbis quase estragou um jantar romântico surtando com meu namorado, na época, um desconhecido para o animal. Para que não lhe arrancasse uma perna, precisou de cinco longos minutos de fungadas nas canelas do homem, como uma batida policial, vasculhando todos os cantos. Depois de um pouco de vinho tinto da serra e alguns beijos longos, o visitante esqueceu-se do cão.

Anúbis não tinha nome até os seus seis meses de idade. Eu assim o nomeei por alguns motivos. No meu aniversário de onze anos, meu avô estava para me dar um presente, pediu para eu escolher algo. Não tive tempo de terminar a ligação pelo orelhão: meu avô infartou. Passei os dias de luto afundada em inércia, tão apática e 'solita' que nem mesmo lavava meu rosto pela manhã e escovava os dentes. Uma criança num estado inteiramente mórbido. Meus caminhos acabaram cruzando com o do cão. Era o que eu ia pedir ao meu avô. Quando fui escolher um animal que fosse adequado para a minha condição psicológica, encontro com o filhote preto, dócil e brincalhão. Eu me recusava a brincar com ele, até o dia em que o cachorro me acordou, me forçando a me levantar. Eu, sonolenta, caminhei até a sala e dei de cara com meu avô, ao lado do vaso com suas cinzas. Senti os pulmões inflando, como se pavimentassem a minha garganta para suportar meu grito agudo sem machucar minhas cordas vocais. Fiz duas descobertas: eu era médium, o cão também. O nome veio da fixação do bicho com a morte. Isso rendeu muitas histórias. Vou contar uma delas resumidamente quando concluir este tópico. Anúbis, deus egípcio, conduz os espíritos de coração bom para o reino de Osíris. Veio a calhar quando li isto numa edição aleatória da Superinteressante, também pelo seu grande porte, o negro de sua pelagem e por Anúbis, em suas representações ser um canino.

Outro momento onde Anúbis sai de seu comportamento cotidiano é quando alguém conhecido morre. Se alguém vai cair e bater a cabeça na pedra da esquina ele consegue saber. E avisa. Põe a caminha com estampa de ossinhos para fora, rasga solas dos sapatos, faz xixi no tapete da sala, entre outros. Logo que saí da casa de minha mãe, aos dezenove, o trouxe junto comigo. Ele não parava de tentar abrir as caixas com as patas e rodar em volta do pátio. Quando desencaixotei as louças, perdi três copos de um jogo novinho que ganhei de presente. O primeiro telefonema que recebi naquela tarde foi da minha mãe, dizendo que o filho da minha antiga vizinha tinha cometido suicídio. Esse cachorro literalmente fareja morte. E eu, acabo por ver os espíritos mal direcionados por aí.

Um dia eu acordei bem, sem motivo aparente. Anúbis também. Eu repeti o almoço. Pelas 13h40min, senti desconforto no estômago. Colhi ramos de boldo, macerei nas mãos até o cheiro subir. Anúbis chorava lá no pátio. O sol estava forte, minhas pernas não aguentavam o pouco peso do meu corpo. Tentei enganchar os dedos para me prender ao chão, de tanto desespero. Respirava com dificuldade, salivava como um bicho cansado. Arrastei-me ao banheiro e vomitei absurdamente. Tinha um longo caminho até a sala, que percorri em quatro pés, com a vista escurecida. Eu tenho crises de pressão, mas nunca havia sido nada tão intenso que não pudesse ser suportável e não se controlasse com um punhadinho de sal. Tateei a mesa de centro, agarrei o celular e liguei para minha mãe. Não lembro o que falei, provavelmente não disse nada com sentido. Nesta hora senti cheiro de gardênias no auge da floração. Anúbis uivou alto no pátio com as patinhas tão moles quanto as minhas pernas trêmulas. Caminhou cambaleando até mim e deitou o focinho frio no meu ombro.

— É você ou eu?

Perguntei ao cão. A sua língua pendeu para o lado, molhando minha clavícula. As suas córneas escuras perderam seu brilho de diamante negro. Ele nem se sentou: tombou o corpo como se lhe tirassem o chão que pisa, sem base. E eu apaguei.

Uma semana antes, Anúbis fez dezoito anos e nunca esteve tão feliz. Levei-o para um passeio na praça, ele brincou com alguns adolescentes inclusive. Socializou com outros cães. Penso que se a morte nos uniu também ela tem o poder de separar, mas estava convicta que eu iria. Eu não queria comer, não queria sair, somente trabalhava e voltava para casa. Chorava toda noite como criança. Me ofereceram outros cachorros, eu não adotei nenhum.

Numa noite mais fresca, eu acordei de um sono profundo e tranquilo. Bebi água na cozinha e percebi a basculante aberta. Com desânimo, fui fechá-la, sem paciência com a minha distração. Espiei o gramado e a corrente que tentaram me convencer a jogar fora fez barulho como um chocalho de cobra. Eu sorri e chorei. Até hoje ela ressoa no mesmo horário. Anúbis nem mesmo mudou o turno, de modo a me acordar para a vida - ou para a morte - como me acordou aquele dia.

Quando tintila a corrente no meio da noite, eu lembro que ainda tenho um cão.

Conta que AconteceOnde histórias criam vida. Descubra agora