burro de cachaça

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Eu não via graça em bebida no começo da minha adolescência. Não entendia a razão da necessidade de beber até vomitar ou fazer alguma besteira. Tinha muito medo até, acho que todo mundo tem. Tem gente que usa de justificativa uma vontade de querer esquecer dos problemas. O que é uma coisa bem perigosa porque se você tem muitos problemas e bebe para esquecer eles, quer dizer que você bebe muito. Nunca curti a parte da alteração de sentidos.
A primeira vez que eu bebi de ficar bêbada foi num dia que minha mãe saiu e eu acabei convidando minha amiga para dormir lá em casa, pois eu não queria ficar sozinha. Ela trouxe um Corote de morango. Aquilo ali é o demonio numa garrafa. A gente colocou um som, bebeu, eu fui colocando aquilo para dentro como se fosse um suquinho agridoce e eu ainda tive a audácia de dizer que eu era forte para bebida porque eu não estava sentindo nada mais que uma leve alegria. De repente, numa balançada de cabeça, eu fiquei completamente tonta. Eu não conseguia mais dançar sem cambalear e bater nas coisas. Não conseguia ter muito controle. Eu comecei a chorar de desespero, sentei querendo que aquilo passasse logo e quanto mais eu pensava, mais eu chorava. Minha amiga que já era mais acostumada, me xingou muito, mesmo trocando palavras e falando estranho. Ela dizia assim:

— Para de chorar, isso é normal.

Ou dizia:

— Meu Deus tu acabou com a noite, não dá pra beber contigo. Nunca mais vou beber contigo.

E eu chorava desesperadamente dizendo:

— Eu não sabia que era assim, eu não consigo me controlar, eu não consigo parar de fazer girar.

Olhando agora foi bem engraçado. Eu achava que aquilo ia durar pra sempre. Depois a gente desligou o som, comemos alguma coisa eu acho, não lembro. E fomos deitar. A gente ficou no WhatsApp, conversando com alguns amigos e ela ainda mandou mensagem para um menino que eu gostava na época me expondo um monte, falando que eu gostava dele e essas coisas. A gente dormiu depois e eu acordei completamente normal no outro dia, não vomitei, não senti dor, lembrava da maior parte das coisas. É fato, estou contando em detalhes o que aconteceu. Depois disso eu falei que nunca mais ia beber Corote e não bebi mesmo. Tomei mais cuidado com bebidas alcoólicas no geral também e consegui entender meu processo: quando eu começo a ficar alegre demais, dançarina demais, inquieta demais já é efeito da bebida.

De uns tempos para cá, sinto uma necessidade maior de beber. De ficar tonta. De fazer coisas vergonhosas. Do evento do corote para cá já foram uns seis anos. Eu amadureci muito, eu trabalho, faço faculdade, tenho muitas responsabilidades que antes eu não tinha. Eu passo mais tempo da minha vida ansiosa do que feliz. Mais tempo preocupada do que contente. Mais tempo presa a alguma responsabilidade, mais tempo presa às convenções sociais, mais tempo me policiando, mais tempo resolvendo pepino, mais tempo achando que o mundo vai acabar. Me sinto sozinha. Me sinto estranha, deslocada. Me sinto outra pessoa. Eu me privei de alguns divertimentos. De assistir algumas séries e filmes. De escrever. Agora eu entendo a necessidade de beber para esquecer. Não é bem isso. Eu queria beber para lembrar, lembrar como é sentir que eu tenho mais dias a mais do que a menos. Queria reviver um espaço dentro de mim que eu não consigo mais sentir nem lembrar como era. É mais do que eu deixar os problemas de lado, jogar tudo para o ar, me permitir. É resgatar coisas que quando eu estou sóbria eu não consigo. Sinto falta da sensação de sair de sainha no frio. Eu ainda sou muito nova, não é justo eu ter que abrir mão de tudo que eu demorei tanto para viver. Eu demorei tanto para sair. Eu demorei tanto para beber. Eu achei que ia fazer tanta coisa e nem fiz, muitas vezes pelas circunstâncias externas. Passei muito tempo preocupada com o meu futuro, desde criança. O futuro agora é o presente. Que história eu vou contar? Eu me matei de trabalhar e estudar, fui uma pessoa muito boa, fiz tudo certo, sempre fui muito consciente. Só isso? Eu tenho muita coisa para dizer ainda. Muito para viver. Gente para conhecer.

Estar bêbado é estar livre e vulnerável. Eu não vou falar dos pontos negativos. Eu quero ser sensível uma vez por mês pelo menos e sóbria eu não consigo. Sóbria eu estou presa em todos os tipos de amarras. Eu não sei explicar. Existe um conforto em estar vulnerável, eu vivo uma vida que não me permite ser fraca, não deixa eu ser pouco. Quando a gente bebe, perde a ciência das coisas e isso é maravilhoso. É uma delícia não saber de nada. Eu fico cansada de ter que saber sempre, de ter que ter uma resposta. Perder a ciência das coisas tira o peso do conhecimento das nossas costas. Realmente quanto mais a gente sabe, mais triste a gente fica. Ser inteligente tem um custo. Santa ignorância. Estar acordado te faz querer dormir. É óbvio que isso tem a ver com eu ser negra também. Culturalmente falando, o funk, a festa, o samba, as drogas, sei lá. Tudo isso é retrato de uma tentativa de ser ignorante por um momento. Burro é quem diz que o funk é coisa de burro. Letras simples, vulgares para alguns. Isso é a única distração que as pessoas têm as vezes. Quando a bala queima as costas tudo acaba. E aí? Tem que ter sexo, tem que ter dança, tem que ter droga pra esquecer. Tem que ter a ignorância, é muita coisa pra saber, muito corpo pra enterrar, muito perigo, muito estado de alerta. Mas, saindo dessa narrativa, obvio que não é só com a gente, mas aqui eu falo de perspectivas pessoais. De qualquer maneira, isso é do ser humano. A gente tem que ser fútil, tem que fazer algo desaprovável, tem que fazer coisas sem um objetivo e que não nos levam a lugar algum de vez em quando.

Eu não quero justificar o alcoolismo, só quero dizer que eu não acho mais burrice ver gente beber para esquecer os problemas, mesmo que tenham que encarar eles no outro dia. A burrice também é boa. Uma benção a inocência que a ignorância traz com ela. Maravilhosa a sensação de não ser racional, nem pensante. Incrível não necessariamente precisar responder pelos seus atos ou ficar preocupada com o que vão pensar. Você diz "eu bebi demais na noite passada" e não diz mais nada.

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⏰ Última atualização: Jun 26 ⏰

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