A largartinha de luxo

32 5 0
                                    

Depois de vinte minutos de fila, chega a nossa vez. Na bilheteria, os funcionários me dão um cartão magnético com o número 420 e uma pulseirinha rosa. Ela aparentemente significa que tô
liberado para pegar geral essa noite, já que Rosé e Suzy ostentam cada um uma fitinha amarela de casal.

Ninguém me perguntou nada sobre meu estado civil. Minha solteirice é tão óbvia assim? O segurança da entrada me recebe com um “bem-vindo” grave e me revista. Digo boa-noite para ele e cruzo a porta, atravessando uma pesada cortina de veludo azul royal. Chego em um
corredor estreito iluminado com luz negra, as paredes emolduradas por lousas brancas.

Canetas marca-texto descansam em suportes. As pessoas riscaram os quadros com assinaturas, arrobas de Instagram e Twitter e desenhos obscenos que brilham em neon. O isolamento acústico
deve ser muito foda; não tenho a mínima ideia do que toca lá dentro.

Enquanto escrevo meu nome na lousa, uma voz teatral reverbera, quebrando o silêncio:
— Seja bem-vindos ao Titanic, onde fantasias e sonhos tingem-se de realidade, e os amantes naufragam em deleite! Entre, enrede-se e perca-se! Que comece a melhor noite da sua vida!

A voz vem do fim do corredor. Eu aperto os olhos e vislumbro, encostada contra a parede, uma drag queen.

Me sinto dentro da cena de Alice no País das Maravilhas em que a menina encontra a Lagarta.

Uma leve camada de fumaça artificial sobe do chão e bruxuleia ao redor da drag, dando a ela um
ar surreal.

Os saltos, muito altos, lembram os que a Gaga usava nas eras mais monstruosas da carreira.

Ela veste luvas pretas de látex e um macacão do mesmo material, que se ajusta perfeitamente na cintura finíssima e nos quadris extraordinariamente largos.

E o rosto… Se a parte de baixo do look é Gaga + “S&M” da Rihanna, o restante é Audrey Hepburn em Bonequinha de lux o. Até a peruca preta é penteada num coque imitando a Audrey, com a franjinha e a tiara prateada.

Ela segura uma longa piteira de cigarro, o ponto alaranjado da brasa ardendo na escuridão.

Não há como negar que está arrasando. Tudo bem aquendadinho, silhueta nível Nicki Minaj, make no ponto… Não surpreenderia se estivesse saindo direto da nova temporada de RuPaul’s Drag Race.

— Oiê! — digo ao me aproximar.

— Olá, monamour ! — ela responde, baforando a fumaça do cigarro.

— Mana do céu, a senhora tá arrasando muito!

— Ai, cariño , obrigada! — ela diz vagarosamente, como se posasse para paparazzi imaginários.

Os tamancos criam um abismo de trinta centímetros entre a gente e preciso erguer o queixo para enxergá-la melhor. De perto, aparenta ser ainda mais impressionante com os cílios
colossais, nariz afiladíssimo e boca vermelha em formato de coração.

— Qual seu nome?

— My name ? — ela ri, pitando o cigarro. — Meu nome é Lohane Vêkanandre Sthephany Smith Bueno de HA HA HA de Raio Laser bala de Icekiss, mais conhecida como Nati Natini
Natili Lohana Savic de Albuquerque Pampic de La Tustuane de Bolda. A mulher jamais falada. A menina jamais igualada. Conhecidíssima como a noite de Paris — ela repete o meme tão
rápido que não duvidaria se, sei lá, vencesse a Iggy Azalea numa batalha de papapum.

— Mas pode me chamar de Holly Bardo.

Caio na risada. Ela se abaixa e nos cumprimentamos com dois beijinhos estalados no ar. Sinto que estou em um episódio de Glitter: Em busca de um sonho. Incrível como só de ficar na
presença de uma drag já quero libertar minha Sasha Fierce interior.

— Holly Bardo! Você é filha da Potyguara Bardo também?

— Como todas as drags da cidade — Holly ironiza. Isso explica muita coisa. Acompanhar a cena drag de Natal é como assistir o nascimento de uma filha nova da Potyguara a cada quinzena… ou menos.

— Como nunca te vi antes?

— Eu inexistia nessa dimensão até pouco tempo — ela explica. — Digamos que fui
aprisionada dentro de um iceberg por um bruxo malvado anos atrás. Quando o Titanic me acertou, fui finalmente libertada.

— E aí descobriu que se passaram cem anos e que você é a Avatar?

— Exactly, my dear! — ela gargalha. — Hoje não só controlo os quatro elementos como também trabalho para salvar o mundo dos héteros ensandecidos racistas inveterados e transfóbicos congênitos da Nação dos Fascistas.
Pergunto qual é o seu Instagram. Na descrição do perfil, Holly se diz “trans fazendo drag, vai chorar?”, o que me faz rir. É engraçado porque há essa ideia de que mulheres, trans ou cis, não podem fazer drag, sendo que drag nada mais é do que uma performance artística. Mulheres podem dramatizar seu próprio gênero. Não é RuPaul quem diz, afinal, que nascemos pelados e o resto é drag?

Conhecer Holly reacende o sonho antigo de me montar. Até já sei meu nome: Luna Armstrong. “Luna” por motivos óbvios pra quem está lendo esse livro direitinho e “Armstrong” porque é o sobrenome do primeiro astronauta a pisar na Lua. Na minha cabeça, pelo menos, faz sentido.
Rosé e Suzy me alcançam, e Holly pigarreia.

— Essas belas moças  estão com você? — ela pergunta com súbito interesse.

— Sim, mana! Essa é a Rosé, minha melhor amiga, e esse é o namorada dela, Suzy— eu os apresento.

— Oi! — o casal saúda em uníssono.

— Ai, que brotinhos! — Holly assovia. — Posso fazer uma pergunta meio que, digamos, indelicadan ?

— Pode mandar — Suzy fala.
Holly anda até ficar entre os dois, escorando o braço que não segura a piteira em Suzy. O rosto de Rosé se enche de ciúmes.

— O relacionamento de vocês é aberto ou fechado, mi amor ? Se for aberto, um ménage à trois não seria má ideia. Se for fechado, Holly Bardo é sempre sua melhor exceção.
Rosé cruza os braços.

— Eu passo seu insta pra eles depois, Holly — digo. — As duas têm tentado umas coisas… peculiares.

— Peculiares?

— Tipo uma tal de posição “mergulho de pirarucu”. Já ouviu falar?

— Mergulho de pirarucu? É isso mesmo que vocês estão tentando? — Holly ergue as sobrancelhas, gargalhando. — Mergulho de pirarucu é pra amadores, coisa de iniciante. Holly Bardo pode ensinar algo muito mais… revolucionário! — Ela abre os braços dramaticamente. — A cama-elástica holística-escoliótica, por exemplo.

— A cama-elástica o quê, bee ? Escolio-quê? — Rosé bufa, mas Suzy intervém:

— Lembrarei com carinho da oferta no futuro, Holly. Me parece… interessante .

— Perfeito. — Ela solta a fumaça mais uma vez e gira a maçaneta da porta dourada. De repente, toda a música que estava abafada chega aos nossos ouvidos. Está tocando “Say It Right”, da Nelly Furtado, e por isso sei que estou no lugar certo.

— Foi um prazer conhecê-las,
Madames. Agora sumam da minha frente que atrás vem gente, não façam nada que eu não faria, e aproveitem a noite!

Apesar de meio ameaçador, ela diz tudo isso de forma superengraçada, e nós rimos. Rosé e Suzy dão abraços rápidos em Holly e são os primeiros a passar pela abertura.

Quando estou prestes a passar, ela põe a mão em meu ombro. Diz algo que não entendo e me inclino para ouvi-la melhor.

Um lastro denso de fumaça paira ao redor do seu rosto, e seus olhos me fitam enigmaticamente ao sussurrar com seriedade:

— A vida tem um jeito estranho de enviar mensagens, ma chérie . Mas acredite: essa noite é sua! O que quer que aconteça, você merece. Só agarre! Nenhum encontro é por acaso.

Enquanto eu não te encontro - JenlisaOnde histórias criam vida. Descubra agora