Carmella estava feliz com o desenvolvimento de seus chifres. Eles haviam crescido bastante no último mês, já dava até para pendurar fitinhas e correntinhas.
Laga Dyga havia lhe dado uma tornozeleira com um pingente de coração quando notou que as protuberâncias da menina estavam ficando maiores, e ela usava-a na cabeça como enfeite.
- Trouxe um presente para você - disse Mafê, pulando a janela do Orfanato que dava para um parapeito largo. As duas amigas adoravam ficar ali, admirando o movimento noturno da cidade. Maria estendeu a mão e mostrou um pedaço de fita vermelha. - Para seus chifres.
- Que lindo, Mafê! Pode colocar? - Maria Fernanda fez que sim e amarrou a fitinha com cuidado.
- Vai combinar com a que você me deu no meu aniversário, lembra? - A menor estendeu o pulso e mostrou a fitinha roxa agarrada a ele.
- Pulseiras da amizade. Sabe o que significa?
- Que somos amigas, ora.
- Bem mais que isso, Mafê. Somos amigas não porque nos trocamos fitinhas, mas porque consideramos uma a outra. Esse pedaço de fita é só um símbolo.
- Ah, disso eu sei né. Não saio por aí trocando fita com a Ana Bella e a Nivia nem com a Martina mas acho que mesmo assim posso me considerar amiga delas.
- Você sabe que nunca vou deixar de ser sua parceira, não?
- Sei? - brincou Maria. Carmella revirou os olhos mas abriu um sorriso.
- Como estão indo os treinos?
- Cansativos. Faz uma semana e meia que comecei a descer todos os dias para ficar atirando em alvos aleatórios. É meio chato para falar a verdade, acho que seria melhor se eu tivesse companhia.
- Por que você não treina com as crianças mais velhas?
- Laga Dyga não quer isso. Ela não disse o porquê, mas está me treinando separadamente.
- Estranho.
- Pois é, mas sinceramente acho que é melhor assim. Os mais velhos me assustam. O que eu queria mesmo era treinar com você. - KK soltou um suspiro triste e encarou a cidade.
- Logo logo vou começar, só não sei quando.
Mafê encarou a amiga. Não era justo que Carmella estivesse passando por aquilo. Sem pensar duas vezes, a pequena agarrou a mão da chifruda e a puxou para cima.
- O que você está fazendo?
- Não vamos ficar aqui chorando. Vem comigo.
Antes que KK pudesse falar qualquer coisa, foi conduzida de volta ao Orfanato. Mafê sabia que as catacumbas estavam livres naquele horário, por isso teve segurança para levar a amiga la para baixo.
- Mafê, acho que eu não deveria estar aqui - soltou Carmella enquanto descia as escadas escuras e úmidas.
- É verdade. Mas só hoje não vai ter problema. Vamos, estamos quase chegando.
- Para onde você está me levando?
- Surpresa.
Caminharam mais um tempo, passando porta por porta. A boa notícia era que Maria conhecia os corredores principais do subsolo, senão as duas estariam perdidas. Qualquer um que não soubesse o caminho estava ferrado ao entrar naquele lugar.
Quando Mafê parou, as duas estavam de frente para uma porta enorme.
- Carmella, bem vinda ao paraíso. - A pequena girou a maçaneta e apresentou o lugar mais belo do mundo.
Nas paredes, inúmeras armas e máquinas pequenas. E no centro da gigantesca sala estavam guardados tanques e naves e tudo da maior engenhosidade possível. As duas estavam em uma espécie de mezanino, e felizmente somente elas estavam ali.
- Mafê! O-o que é tudo isso?
- Vitória, Carmella, vitória!
- Vitória?
- É! - Mafê havia ficado empolgada. - Laga Dyga me falou semana passada que o mundo pode mudar. Você sabia que existem outras cidades além de Gramela?
- O que? Sério? Podemos ir até elas?
- Aí é que está. Laga Dyga disse que as pessoas não nos aceitariam lá; que não aceitam as pessoas que vivem aqui.
- Por quê?
- Alguma palavra que parecia prenoceito, ou precocleiton. Não sei. O que importa é que com isso tudo - a pequena gesticulou para as máquinas - as coisas poderão ser diferentes.
- Isso significa que vamos poder viajar?
- Exatamente!
A chifruda sorriu e abraçou a amiga, que imediatamente pegou sua mão e a levou para conhecer a sala na qual ficavam armazenadas as armas.
Quando Carmella entrou, seu olhar caiu sobre as diferentes espadas dispostas nas paredes.
- Pode pegar uma - disse Mafê.
- O que? Simplesmente pegar?
- É. Te trouxe aqui para isso. Já que você não treina comigo achei que ao menos deveria conhecer um pouco. - Maria pegou um arco que estava no chão. - Esqueci de guardar esse aqui da última vez que vim a esta sala.
- Não sabia que treinava com arcos. Pensei que fossem só armas.
- Nos primeiros dias foram, mas depois que descobri o arco, tudo mudou. Você não vai pegar nada? Vi que ficou de olho nas espadas.
- Achei elas lindas. - Carmella pegou a que parecia ser mais leve e deu uma girada pela sala com a arma, cortando o ar sem parar. - Isso é incrível!
- Não é? Olha só o que sei fazer.
Mafê apontou uma flecha para um alvo distante e acertou-o em cheio.
- Uau! Que demais!
- Não é?! E se tudo der certo até...
- Por tudo que é mais sagrado, o que vocês estão fazendo aqui?! - falou João Vitor, uma das outras crianças do Orfanato Imaculada. - Se Laga Dyga pegar vocês, estarão mortas.
- Relaxa, Joca, tá tudo sob controle. Ninguém vem aqui nesse horário - comentou Maria.
- Não me chame de Joca. Esse não é meu nome.
- Você ficou meio chato desde que passou a andar com as crianças mais velhas. Até esqueceu de nós.
- Não esqueci, só tenho outras responsabilidades. E o que ela está fazendo aqui? - João apontou para Kaká. - Carmella não tem permissão para estar nessa sala.
- Eu sei, mas precisava que ela visse tudo isso. É muito chato ter que ficar aqui sozinha. E é bom ela já ir se acostumando para quando começar a treinar, não amiga?
- Mafê, acho que o Joca tem razão. Vamos embora antes que alguém nos pegue.
- Parem de me chamar de Joca!
- Tá certo - disse Maria, largando o arco. Carmella aproveitou para deixar a espada no lugar também. - Vamos indo. Mas aliás, João, o que você veio fazer aqui?
- Checar algumas coisas para a mãe.
- Você está treinando muito próximo dela, não?
- Assim como você.
Maria e João trocaram um olhar suspeito mas permaneceram em silêncio. Não importava quais fossem os planos de Laga Dyga, os dois sabiam que eram peças importantes, e amavam aquilo.