A FACA BRANCA QUE CORTAVA TUDO (PARTE UM)

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Os dedos mal se moviam, endurecidos pelo frio, agarrados às botas velhas.

Pernas encolhidas, cabeça apoiada nos joelhos, olhos sem vida. Ela já havia desistido de limpar a sujeira debaixo das unhas e de lavar os cabelos. A cada ano que passava, eles se tornavam mais longos e difíceis de esconder com o lenço.

Também já havia desistido de achar um propósito para continuar viva, exceto, talvez, recuperar aquela faca. A faca branca que cortava tudo. A faca com a qual fora salva. Na primeira vez, de um grupo de mercenários, na segunda, da morte por inanição, ao trocar o objeto por comida.

Usar a faca para cortar o cabelo foi a coisa certa a fazer. Tinha onze anos na época, uma garotinha bem-cuidada por bons pais, e, mais do que isso, boas pessoas, uma coisa cada vez mais rara após a catástrofe.

A colônia a qual pertencia ficava nos subterrâneos do lugar chamado Mão-Com-a-Tocha, seu povo usava radiação ultravioleta para cultivar alimentos e fogo para purificar a água. Viviam bem para as condições daquele mundo. Até que um dos coletores cometeu o erro mortal de não apagar seus rastros após roubar armamento e cobertores de um acampamento de caça dos canibais. Os pais foram mortos durante o ataque que essa ideia infeliz desencadeou. E a menina ficou vagando, fugindo, escondendo-se em um bunker que ficava nos arredores. Uma criança sozinha naquele mundo desolado. Não demorou muito para que caísse nas mãos dos mercenários.

Talvez não fizesse muita diferença estar dormindo ou não, o pesadelo continuava ali. Mas quando estava acordada, ela concentrava seus pensamentos na faca. A faca branca que cortava tudo. A faca branca que cortou as gargantas dos mercenários, que os impediu de machucá-la. A faca branca que Olhos de Ametista dera a ela. Ele era capaz de matar mercenários tão rápido quanto um raio, talvez isso significasse que era uma aberração pior do que eles.

Ou não.

Um canhão soou distante. O som percorreu lentamente os subterrâneos da Floresta de Pedra. Ela se mexeu, os dedos frios soltaram as botas. Mais uma hora havia se passado.

Olhos de Ametista a trouxera à Floresta de Pedra havia sete anos. Desde então ela estava lutando para manter a sanidade. Sete anos vivendo disfarçada de homem nos subterrâneos. Sete anos trabalhando para recuperar a faca com a qual fora salva. Era tudo o que tinha. Tudo a que podia se apegar. Por isso, ela se arriscava descendo aos níveis mais baixos dos túneis, e pelo mesmo motivo estava se levantando mais uma vez e se encaminhando para lá. Para coletar lixo tecnológico do Velho Mundo, trocar uma parte por alimento — apenas o necessário para sobreviver —, guardar parte para trocar com o ruivo que estava com sua faca. 

Todos os dias a mesma coisa. 

Aqueles que vagavam pelos túneis, não importava a qual raça pertenciam, pareciam tão mortos por dentro quanto ela. Olhos fundos, semblante duro, esculpido pelas mazelas daquela vida sem significado. 

Nos primeiros níveis subterrâneos, viviam os escavadores, pobres e refugiados. Ali, os túneis eram mais largos, havia velhos trilhos pelos quais corriam carrinhos ainda mais velhos, levando a terra que os escavadores recolhiam. Nos andares mais profundos, onde vivam as mutações, tudo parecia sempre úmido e claustrofóbico, alguns daqueles túneis eram tão estreitos e inclinados, que até a passagem de alguém pequeno como ela se tornava difícil. Acima da terra, viviam os Ruivos, outro grupo de pessoas antigas. Ao longo de dois séculos, aquele povo conseguiu expandir seu domínio além das nuvens tóxicas, onde era possível receber a luz do sol. Uma nação rica entre miseráveis. 

— Ae, moleque! De novo aqui? 

Ela girou nos calcanhares agitando o lampião à procura da origem do som, mal havia chegado aos níveis inferiores. 

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