Das estruturas de prédios arrasadas, os Ruivos fizeram sua cidade. Imensos tubos que se estendiam acima das nuvens, abarrotados de colmeias onde residiam as famílias. Havia um andar inteiro de lojas de penhores, logo acima da terra.
Naquela época, Zoe — sim, esse era o dela, Zoe, embora soasse como uma palavra estrangeira em sua boca, devido à falta de uso — dizia não acreditar que pudesse existir uma vida fora daquelas catacumbas. Ao menos, não uma que fosse minimamente digna. Mas se ela fosse honesta consigo mesma, coisa que quase nunca se dava ao trabalho de ser, admitiria que a faca pouco importava. Seu ideal mais profundo não era recuperá-la, mas, sim, rever a pessoa que havia lhe dado aquele presente. Talvez assim pudesse provar a si mesma que estava errada, que em algum lugar existia uma vida melhor.
Àquele horário, os coletores faziam suas trocas. Havia barulho de vozes falando em diferentes idiomas. Pessoas indo e vindo, escavadores com olhares cansados, coletores maldizendo os donos das casas de penhores, ladrõezinhos procurando ocasião para furtar qualquer coisa que pudesse ser trocada por um pouco de comida.
Zoe estava agarrada ao livro escondido embaixo do casaco, Ghost ia caminhando ao seu lado, um pouco desconfortável. Fantasmas não gostavam de subir aos níveis acima da terra. Não que fosse claro ali, era apenas mais claro do que o breu ao qual ele estava acostumado.
— Então, é aqui que está sua faca? — ele perguntou quando pararam em frente a uma das maiores casas de penhores da Floresta de Pedra.
Zoe aquiesceu. O fantasma assobiou.
— MacManus? Sério que você faz negócio com esse cara? Ele é o maior trapaceiro!
Ela quase riu. Era irônico. Os Fantasmas eram conhecidos por serem os maiores trapaceiros, mas se um fantasma dizia que alguém era trapaceiro, das duas uma: ou estava tentando amenizar as próprias trapaças, ou a pessoa em questão superava todos os limites da desonestidade. Tratando-se de Erwin MacManus, ela sabia que era a segunda opção.
Havia todo tipo de quinquilharia do Velho Mundo na casa de penhores de MacManus. Coletores, como Zoe, não frequentavam o lugar a menos que tivessem algo muito valioso para trocar. A maior parte da freguesia do ruivo era composta por outros ruivos e por viajantes ricos. Havia pederneiras, facas, tinta, papel, vestidos, perfumes... Zoe sempre ficava deslumbrada ao entrar ali. "Todas aquelas coisas bonitas..." — Era o mais perto que a coletora chegaria de qualquer uma delas.
Ela parou em frente a um aquário, um peixe horrendo que parecia ser feito de pedra a encarou. Zoe se aproximou, quase colando o nariz ao vidro coberto de limo.
"Você é muito..." — Feio!
Um brilho violeta reluziu através do aquário. A coletora gritou e a pessoa do outro lado fez o mesmo. Ghost se colocou em posição de ataque e o velho MacManus saiu praguejando dos fundos da loja.
— Esses dois estão incomodando, Milady? — perguntou o ruivo, olhando para trás do aquário.
Ghost e Zoe só puderam ter uma visão melhor da moça quando ela se ergueu, passando as mãos no vestido para desfazer as dobras. Era um vestido muito bonito, diferente de qualquer outro que eles alguma vez tivessem visto, assim como a moça que o vestia era — sem dúvida — a criatura mais bela que já havia pisado a face da Terra. A pele delicada como porcelana, os lábios rosados, quase vermelhos, os cabelos negros e compridos, e os olhos... "Olhos de ametista." — Zoe parou incrédula enquanto a moça sorria para ela e Ghost.
— Não, de forma alguma — falou se voltando para o dono da loja. — Providenciou tudo o que solicitei?
— Pólvora, pederneiras e mechas para arcabuz. — MacManus balançou a cabeça e olhou para Zoe e Ghost. — Se vocês dois não têm mais o que fazer, parem de importunar a mim e a senhorita Mackenzie. Vão embora!
Mackenzie se voltou para uma das prateleiras onde repousava um arcabuz e começou a inspecionar o funcionamento da arma.
— Eles não estão me importunando, senhor MacManus. Agora, por gentileza, coloque minhas coisas em uma embalagem bem forte. Minha viagem de volta será longa... — A moça pareceu lembrar-se de algo. — Ah, sim! E coloque também aquela faca que me mostrou!
Um alarme soou na mente de Zoe. "Faca... Faca? Faca!" — MacManus, seu filho da puta!
Zoe avançou contra o homem, Ghost tentou segurá-la, mas o máximo que conseguiu foi agarrar seu casaco. Ela correu com os punhos fechados em direção ao ruivo que tinha o dobro de seu tamanho, mas um raio violeta a envolveu e a levou de volta ao ponto de onde havia partido.
— Mas... mas... Mackenzie segurava o riso, cobrindo a boca com os dedos envoltos em delicadas luvas.
— Sua... sua... Bruxa! — Zoe gritou.
— Não. Não. Não, garotinho. — Mackenzie balançava o dedo indicador como se falasse com uma criança. — Você não pode chamar Joy Mackenzie de bruxa, você deve chamar Joy Mackenzie pelo que ela é, e Joy Mackenzie é... Eu!
Os olhos dela emitiam um brilho estranho. Zoe ficou hipnotizada por alguns segundos por aquela luz.
— Por favor, seus baderneiros, se não têm nada mais para me oferecer além da sua incômoda companhia, saiam! — MacManus resmungou.
— O cacete! Você vai vender minha faca pra ela, seu pedaço de merda!
Mesmo mantendo a discussão com MacManus, a coletora não conseguia tirar os olhos de Joy. "Aquele brilho. Aquele mesmo brilho ametista..." — Zoe continuava gritando, enfurecida, MacManus se fazia de surdo. Ghost bocejava. Joy, ora ria, ora contorcia o rosto em uma expressão de choque diante do linguajar chulo que aquele menininho usava.
Nada de novo. Era só mais um dia comum na Floresta de Pedra.
Mas todos os dias extraordinários começam extraordinariamente comuns.
Talvez fosse algo no ar, o ar estava diferente. Ou então, aquele livro, encontrar aquele livro devia ter sido algum tipo de sinal do Universo de que as coisas estavam mudando. Mas a verdade é que nem Ghost, nem Zoe perceberam isso até ser tarde demais para voltar.
Quando o homem de roupas elegantes e máscara de gás entrou na casa de penhores, MacManus o tomou por mais um cliente rico. O ruivo achou que estava em um bom dia, um ótimo dia para os negócios! Mas enquanto o dono da loja avançava para atender ao recém-chegado, Zoe ainda observava Joy. O brilho púrpura em seus olhos havia desaparecido e dado lugar a uma expressão que só poderia ser traduzida por pânico genuíno.
Devagar, a moça começava a recuar para os fundos da loja. Ao mesmo tempo, outros homens de máscara de gás adentravam o local. Estavam vestidos em roupas mais simples que o primeiro, mas nas mesmas cores e com o mesmo símbolo de um corvo negro bordado sobre um fundo roxo.
O ruivo parou, tomando consciência do que estava acontecendo ali. Ghost puxou Zoe para trás pela gola do casaco, Joy começou a se aproximar da prateleira onde havia deixado a arma.
O homem em roupas finas, que parecia ser o líder dos demais, tirou a máscara de gás e sorriu olhando em direção a Joy.
— Eu não faria isso se fosse você, senhorita Mackenzie.
Os olhos do homem brilharam, as pupilas completamente suprimidas pela pura luz, pareciam duas belas gotas de mercúrio.
Olhos de Prata.
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Mundo Sem Fim (DEGUSTAÇÃO)
Science FictionDepois do que ficou conhecido como o Longo Inverno, uma nova civilização se reergueu das cinzas do Mundo Antigo. Novos lugares, novas raças, novos costumes. E as "pessoas antigas", como são chamados aqueles que não sofreram nenhuma mutação, sobreviv...