III - PÉ NA TÁBUA

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Sem qualquer prévio aviso, a voz da minha mãe se esgoelou dentro dos meus pensamentos:

― MATEUS ― quase virei cambote de susto, infelizmente, como estava na beirada da cama, foi suficiente para me fazer perder o equilíbrio e cair de bunda no chão. Nem tive tempo de processar o ocorrido antes de outro berro esganiçado invadir minha mente. ― VOCÊ AINDA NÃO SAIU? SUA AMIGA VEIO TE PROCURAR. ELA TÁ SUBINDO. É BOM VOCÊ ESTAR VESTIDO, MOCINHO.

Estava com muita dor por ter caído e, agora, de cabeça para entender o que ela disse. Não ajudou quando uma moça completamente estranha surgiu na porta do quarto. Minha visão parecia meio turva por causa do sono, além, claro, da confusão tanto física quanto mental se abatendo sobre mim. Tentei divisar o rosto da estranha, mas não consegui. Porém, estranhei as roupas caprichadas demais para uma manhã de sexta-feira. Sapato preto de salto alto fino. Saia nude rodada indo até os tornozelos. Uma blusinha branca folgada, mas sem revelar nada e com mangas flare. Tive até a impressão de ver um crucifixo no pingente. O que raios uma tia da igreja foi fazer no meu quarto às 06h00 da manhã?

A moça virou a cabeça para o corredor.

― Sim, dona Cida, ele tá aqui ― aquela voz pareceu familiar, embora a doçura nas palavras, não. ― Haha, sim. Ele está vestido. Pode deixar, vou tirar ele daqui nem que seja arrastado.

A última palavra soou consideravelmente mais hostil em comparação ao resto. A moça aproximou-se e agachou diante de mim. Eu conhecia aquele cheiro... Não, não podia ser... Só ouvi um "POF!!!" do tapão acertando minha nuca. Gemi ainda mais perdido. Aquela mão era muito pesada. Me encolhi numa bola querendo chorar. Por que tudo, naquela manhã, queria me causar dor?

― Mas que merda você tá fazendo, Tetê? ― perguntou a agressora.

― Como é? Tetê? Só uma pessoa me chama assim ― fiz um esforço extra para ver o rosto da mulher. Cabelos prateados, nariz bem proeminente, grandes lábios pintados de rosa-claro e aqueles chamativos olhos lilases. ― Meu Deus, Shire... é você?

― Claro que sou eu, seu branquelo desgraçado ― disse ela enquanto me acertava outro tapa.

― Ai ― reclamei tentando proteger a cabeça com as mãos. ―, por que tá me batendo?

― Você ainda pergunta? ― ela desviou o olhar. ― Sim, dona Cida ― gritou para minha mãe. Como eu não a via, provavelmente ela estava na cozinha. Não importava quem entrasse em casa, ela tentaria enfiar a maior quantidade possível de comida goela abaixo da pessoa. ― Ele tá se arrumando... Não, não precisa fazer nada... Não mesmo. A gente come quando chegar, ele paga ― Shire me fulminou com o olhar ao dizer isso. ― Hahaha, verdade. Esses meninos de hoje em dia são todos uns desviados mesmo... Haha, verdade. Deus te abençoe também.

Shire voltou seu olhar para mim.

― Quem é você? ― apontei-lhe o dedo. ― E o que fez com a Shire?

Ela revirou os olhos e tentou me bater outra vez. Contudo, desviei do golpe avançando em sua cintura. Shire berrou um palavrão nada cristão conforme caímos e rolamos pelo chão do quarto. Ela afastou meus braços como se fossem feitos de manteiga. Santo Deus, como aquela mulher poderia ser tão forte? Esse nem era o dom dela. Puxei seu cabelo inexplicavelmente longo, Shire retribuiu mordendo meu pescoço com toda a força. Soltei um gritinho mais fino do que gostaria de admitir, sem nem lutar quando ela segurou meus braços, imobilizou as pernas e me dominou por completo antes de cravar um olhar totalmente furioso capaz de dilacerar a alma de qualquer pobre coitado qual cruzasse seu caminho ― como apenas minha Shire poderia fazer.

― Por acaso tá querendo me fuder, é?

― Ah, é você mesmo! ― sorri. ― Até a boca suja.

― Claro que sou eu, seu bundão ― ela apertou meus pulsos com mais força. ― Quem mais viria te buscar em casa, a essa hora?

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