V - PREPARAÇÃO

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A música animada tomou conta do quarto. Há alguns meses, Beto nos viciara em música da Era Passada, de antes da Magia. Muito do material original se perdeu na Idade do Silêncio quando a internet e a maior parte das máquinas que os humanos usavam, foram obliteradas pelo despertar da magia. Hoje em dia, existem vários remixes e versões regravadas dos sucessos daquela época, essa tal de "Get Lucky" de um tal de "Daft Punk" era um exemplo. Beto a colocou para tocar e dançou pelo quarto, movendo-se pelo ar com seu corpo etéreo como uma nuvem no céu, Shire juntou-se a ele, suas roupas mudando para versões mais curtas de si mesmas. Juntei-me a eles. Deixei a música ecoar por mim. Por um instante, havia apenas aquele momento. Sem dúvidas estranhas ou pressão, eram apenas três amigos dançando juntos sem maiores preocupações.

Em algum momento, Beto e Shire cochicharam algo entre si e pediram para eu fechar os olhos. Franzi a testa, mas obedeci com relutância. Senti os dedos finos de minha amiga roçarem meu ombro. Minhas roupas agitaram-se. A textura mudou de macio para... grudento, talvez? Movi os ombros, desconfortável, o gesto foi travado, as roupas pareciam justas de repente. Engoli em seco, estava prestes a pedir explicações quando meus amigos bradaram em uníssono:

― Pode olhar.

Abri os olhos e, momentaneamente, meu coração parou. Eu estava usando a mais apertada, sinistra e bizarra fantasia de gato de toda a história. Ela era toda de couro preto, tinha garras bem pontudas nos dedos, orelhas enormes em cima e até uma cauda semelhante a um chicote. Meu rosto ficou absurdamente vermelho.

― E aí? ― indagou Shire. ― Que tal?

Não fui capaz de esboçar uma resposta.

― Eu acho que o Marcos vai amar ― declarou Beto. ― Modéstia à parte você tá um gatinho.

Os dois riram alto.

― Em nome de Jesus ― falei pausadamente. ― Tirem isso de mim, AGORA!

Shire caiu na cama de tanto rir, ela estalou os dedos e a roupa mudou novamente. Dessa vez, eu estava vestido com camisa social branca, gravata vermelha, uma bermuda curtinha com suspensórios, meias subindo até o joelho e mocassins. O bendito uniforme da escola católica que fui quando criança.

― Uh, mas que joelhos ― brincou Beto.

― Meu Deus, Shire! ― me olhei no espelho sorrindo com a nostalgia. ― Essa saiu do fundo do baú.

Ela riu enquanto me abraçava por trás.

― Você ficava muito fofo nessa roupinha ― comentou. ― Uma falecida versão minha até teve uma quedinha por você, nessa época, e tem boatos de que o Marcos também. ― ela sussurrou a última parte. ― Ele amaria te ver com isso de novo.

― Ah, Shire, só você. ― beijei sua bochecha.

Continuamos brincando com o dom dela pelo resto da tarde. Fui um recruta safadinho, um policial sapeca, um cowboy com seu pistolão e, por algum motivo, o próprio King Kong. Imaginar Marcos com uma peruca loira na cama me fez rir por bastante tempo. Mas, como tudo de bom, nosso tempo acabou. Meus pais chegariam em breve. Seriam necessárias muitas explicações, as quais não estava a fim de dar. Agradeci aos meus amigos por ficarem comigo, a Beto em particular por certas dicas valiosas. Observei-os partindo ao pôr do sol, meu coração estava cheio de alegria em ter pessoas tão maravilhosas comigo. De fato, me sentia capaz de enfrentar qualquer perigo ao lado deles, contudo, não pude deixar de pensar em como aquele dia pareceu errado. Algo faltava. Uma peça fundamental. Marcos. Passar por toda essa preparação sem sua companhia, não soava correto, por algum motivo.

Respirei fundo e balancei a cabeça. Não valia a pena pensar nisso. As coisas eram como eram, não como deveriam ser.

 As coisas eram como eram, não como deveriam ser

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