1- Nando

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Um cheiro de carne assada com batatas surge no ar. Fernando logo sente, antes que qualquer outro possa notar. Não é pra menos, afinal toda a sua atenção estava voltada a toda e qualquer coisa, menos às palavras do pastor Nelson, seria fácil reparar no bater das asas da mosca que acabara de pousar nas costas da senhorita Dolores, em sua frente; ou no decote exuberante da dona Cláudia. Tudo era mais interessante que aquele culto de domingo à noite. Nando tinha que sair de lá, tinha que fugir, fazer algo mais divertido que ouvir repetidas palavras falando sobre amor ou respeito, sobre como Deus cuida de todos nós e toda essa coisa linda e, em sua mente, completamente teórica e sem retorno. Mas ele não podia se dar ao luxo de uma fuga, não depois do que havia acontecido na semana anterior, quando ele e seus amigos de ensino médio resolveram que seria divertido invadir uma propriedade privada bêbados e vandalizar tudo que havia no terreno. O alarme da casa na qual eles haviam entrado disparara, os seus amigos conseguiram fugir, mas ele não. Nando nunca ficara bêbado em toda a sua extensa vida de adolescente, então não estava acostumado aos efeitos de estar nesse estado. Mal conseguia dar alguns passos e logo caia ao chão balbuciando "me esperem". Depois da quinta queda seguida, o garoto havia desistido de levantar e não pretendia sair daquela confortável grama no quintal. Só acordou 20 minutos depois com empurrões de alguém que ele nunca esperaria ajuda: Selma, ou como os pais dela a chamavam anos antes, Henrique.

- Levanta garoto, a gente precisa sair daqui antes que a polícia chegue. - Selma diz a Nando, ofegante e atenta a qualquer movimento. Olhava pra todos os lados sem saber quando as coisas poderiam piorar. Nando, de maneira sarcástica, diz a aparente mulher:
- Me larga, traveco maluco. Meus amigos vão me ajudar, eu tenho que chegar no... - E nesse momento Nando tenta se levantar mas falha miseravelmente, sua cabeça rodava mais que uma cueca em uma máquina de lavar, e o seu estômago também já havia visto dias melhores. Henrique, ou Selma, levanta o braço do rapaz, coloca sobre seus ombros e o ajuda a levantar do quintal daquela propriedade. Antes que os dois consigam chegar na calçada do outro lado da rua, dois carros policiais os encurralam e toda a esperança de fuga vai por água abaixo. Selma e Nando são colocados em um carro e levados à delegacia enquanto a outra viatura permaneceu no local pra averiguar a situação e procurar por mais possíveis suspeitos. Os danos incluíam 2 janelas quebradas, uma porta pichada, urina por toda a área da piscina, parte da grama queimada e algumas garrafas jogadas por todo o lugar. Nada parecia ter sido roubado, a não ser o pequeno anão de jardim que estava dentro da mochila de Nando.
Ao chegar à delegacia, o policial Amarantes resolve fazer algumas perguntas ao mais novo vândalo da cidade, enquanto ele se perguntava o que aconteceria quando chegasse em casa. Ou mesmo se chegaria em casa naquela noite.
Nando morava no interior do Rio de Janeiro, mais precisamente pros lados de Mangaratiba. Sua casa tinha 5 quartos, duas salas e 3 banheiros: 2 no andar de cima, e um no andar inferior. Seu irmão Antônio dormia no quarto ao seu lado, enquanto seus pais, Denise e Sérgio, utilizavam o quarto a sua frente. Haviam dois quartos sobressalentes, um na parte de cima da casa, e outro na parte de baixo, mais precisamente nos fundos da casa. Tal quarto, como ficava perto da área de serviço, ficou como espaço pra roupas sujas, tralhas e tudo que não tinha ocupação. Já o quarto do andar de cima foi utilizado por Sérgio como escritório e biblioteca, porque muitas vezes ele era obrigado a levar serviço pra casa, já que seu negócio próprio de venda de eletrônicos era praticamente o único do tipo nas redondezas, o que o fazia ligeiramente prosperar.
Denise, por outro lado, tinha um trabalho que não lhe proporcionava dever de casa, mas sim algumas dores de cabeça. Como psicóloga, ela passava a maior parte do seu dia em seu escritório, no centro do município. Escutava os mais diversos problemas e as mais inusitadas situações. Amava o que fazia, com certeza, mas mesmo assim sentia o peso de todos aquelas problemas.
Antônio era militar, geralmente ficava fora de casa, de serviço, então mal usava o seu quarto, que permanecia arrumado como um quarto de um militar. Com 25 anos e uma carreira promissora pela frente, resolveu que seria sábio engravidar sua namorada, então seu tempo em casa encurtara-se mais ainda.
A relação da família sempre foi boa, Sérgio era um pai exemplar e um bom cristão; Denise era uma ótima ouvinte, amiga, companheira, mas desatenta às necessidades dos seus filhos. Por mais que todos fossem extremamente ocupados, trabalhando, aconselhando ou estudando em tempo integral, como era o caso de Fernando, ainda assim arrumavam tempo para jantar juntos pelo menos algumas noites por semana, e conversar sobre os seus dias atarefados. Mas naquela noite Fernando se atrasaria pro jantar.

- Ô moleque, eu to falando com você. Se o senhor acha que vai sair dessa impune por causa do respeito que nós temos pela sua família, talvez você deva repensar. - Disse Amarantes a Nando, enquanto Selma conversava com o outro policial de plantão.
- Eu vou perguntar mais uma vez: quem mais estava com você?
- Eu já disse, ninguém. - Respondeu Fernando. Amarantes nervoso continua o seu questionamento - Então eu devo acreditar que você e a senhorita Selma aqui resolveram sair juntos e vandalizar propriedade particular? Não sei o que vai ser pior de explicar pros seus pais.
- Não, essa também não é a história. O traveco apareceu depois, e eu nem sei da onde ele surgiu. Olha, eu fiquei bêbado e resolvi fazer uma besteira, sou um adolescente, é isso que nós fazemos. Agora me libera pra eu poder ir pra casa, Amarantes.
- Você não vai mesmo me dizer mais nada né? Tudo bem... - Depois de um longo suspiro, o policial resolveu concluir - Seu julgamento e da sua amiguinha vai acontecer na sexta.
- Amarantes! Por favor...
- Chega, Fernando. Vou te levar pra casa e pedir aos seus pais pra assinarem esse papel. Você precisa ter consciência dos seus atos. Agora levanta, você tem muito o que explicar.
Chegando em casa, depois de horas de broncas, sermões outras coisas, Fernando tinha sido proibido de faltar cultos, teria que conversar com o pastor Nelson toda quinta depois da escola, já que era proibido de se consultar psicologicamente com a sua própria mãe. Além de ser pastor, Nelson, da Igreja Batista, também era psicólogo e professor de teologia. Além de tudo, também era um homem sábio e que valorizava as coisas importantes da vida. Mas Nando só o via como o cara chato que estragava sua noite de domingo. Também foi intimado a comparecer às aulas dominicais da manhã na igreja, e em todos os eventos que tivesse. O rapaz escutou sem pronunciar nenhuma palavra. Além da decepção que teve com seus supostos amigos, sua cabeça doía como se mil sóis estivessem entrando em colapso dentro do seu crânio. Acabadas as sentenças, deitou em sua cama e rapidamente dormiu. Mas as coisas pra Selma não aconteceram da mesma forma. As coisas eram diferentes pra ela.

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