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Era para ser apenas mais uma noite habitual de sono, um repouso exclusivo para o seu físico, dado que a sua mente se desligava ao adentrar no adormecimento profundo, logo, sem sonhos — e assim ocorria desde que Madalena se entendia por gente

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Era para ser apenas mais uma noite habitual de sono, um repouso exclusivo para o seu físico, dado que a sua mente se desligava ao adentrar no adormecimento profundo, logo, sem sonhos — e assim ocorria desde que Madalena se entendia por gente.
 
A morena deitou-se para dormir como de costume, respirando uma brisa fria e acolhedora que penetrava através da única janela em ventos sutis, trazendo consigo uma suave carícia. As cortinas finas não filtravam a luz da lua cheia, criando uma atmosfera mágica no interior do pequeno trailer. Aconchegou-se entre as dobras do edredom xadrez, fechou os olhos e permitiu-se sonhar acordada até que o seu subconsciente se rendesse.
 
Sons de sopros suaves começaram a soar pela janela, uma fumaça rasa, acompanhada de uma aura levemente vermelha e empoeirada, invadiu o seu cubículo sorrateiramente, fazendo um trilho lento, rastejando-se pelo chão tapeteado em direção a doce artista.

Subiu com facilidade, abraçou as suas pernas, aumentando a densidade cada vez que a envolvia como manto, e por fim, penetrou em sua alma, elevando-a lentamente, como uma pluma em levitação. Sua figura esbelta e pálida flutuou sobre o colchão adornado de almofadas e uma peculiar coleção de pelúcias costuradas à mão. A sensação não era nada convidativa; sentia-se desamparada sem as suas cordas de acrobata, desprovida de qualquer controle sobre o próprio corpo.
 
A escuridão que dominava a sua mente dissipou-se gradualmente, revelando um cenário incógnito, um mosaico de cores distintas — um misto policromático que se misturava sem formar qualquer figura concreta, apenas borrões em constante movimento, capazes de causar vertigem. Eram as cores com as quais estava habituada a trabalhar nos ares: vermelho cornalina, preto, laranja cobre e verde lodo.
 
O ar ao redor começou a ficar seco e rarefeito; os seus pulmões, de maneira inesperada, ansiavam por oxigênio. A garota franziu o cenho e tentou abrir os olhos, mas sem sucesso. Mantinha-se estática no ar, presa em uma paralisia sensorial.
 
Após alguns segundos de tormento, conseguiu despertar em um frenesi, mas com a sua cabeça emergindo de um mar desconhecido, imersa em um nada escuro — definitivamente não estava mais em seu quarto. Respirou profundamente quando o seu rosto encontrou o ar e o oxigênio invadiu suas narinas, sentindo uma certa ardência nos pulmões.
 
Atordoada e ainda tomando fôlego, virou-se sem deixar de mexer as pernas e braços a nado para não afundar, observando o ambiente ao redor em busca de pistas. Ela boiava em um vasto lençol de água, não uma água comum e cristalina, mas uma que tinha cores, como se estivesse mergulhada em um lago fundido com o arco-íris.
 
Acima dela, o azul de um céu diurno era inexistente; em seu lugar, havia um espaço infinito envolto em negro, salpicado por raros pontos brilhantes dispersos aleatoriamente.
 
Madalena tentou nadar e surpreendeu-se ao perceber que, a cada impulso, o lago se tornava mais raso e os seus pés finalmente tocaram um chão. Conseguiu se erguer e dar alguns passos, sentindo a água bater em suas canelas. O seu corpo estava nu, a pele perolada acabou sendo manchada pelas cores da água, e os cabelos estavam escorrendo pelo peso da umidade.
 
Observou mais uma vez ao seu redor, buscando uma saída, mas o lugar não oferecia nada além do lago infinito e a vasta escuridão que a cercava. Somente a zona em que se encontrava era surpreendentemente iluminada.
 
Decidiu seguir em frente. A água produzia sons a cada passo que dava, movendo-se, mas não a levava a lugar algum, pois o local se estendia cada vez mais, limitado pelo breu contínuo. Era ela, a única criatura viva a vagar por ali, perdida, sem saber como escapar.
 
Era como se fosse um novo mundo à espera de moldagem ou desenho, ávido por detalhes e um ponto de partida para se tornar algo mais. Ao mesmo tempo que, metaforicamente, poderia representar a sua mente, entediada com a monotonia cotidiana, ou um coração vazio...
 
Enquanto continuava caminhando e nada de novo acontecia, algo inesperado fez com que ela parasse abruptamente: emergiu à sua frente, através de uma fumaça negra, uma borboleta de tonalidade semelhante. Madalena não pôde conter a expressão de espanto e, lentamente, deu alguns passos para trás, cautelosa, com os olhos fixos no inseto.
 
A borboleta seguiu os seus movimentos, sobrevoando ao seu redor. O som das suas asas ecoava em meio ao silêncio, assemelhando-se à brisa batendo em folhas secas de outono. Madalena tentou tocá-la com a ponta do dedo, mas a borboleta se afastou, girou em torno do seu corpo e partiu em direção ao norte, impulsionando-a a segui-la. A criaturinha estava ágil, quase não a alcançava pelo peso da água atrapalhando seus movimentos.
 
No entanto, algo a fez parar novamente: avistou de longe um objeto, onde a borboleta desapareceu de vista. O seu corpo ficou imóvel no meio do caminho, enquanto tentava focar os seus olhos verdes no incógnito. A sua visão se misturava com o véu de escuridão, ponderou por alguns segundos e decidiu seguir em direção a ele.
 
À medida que se aproximava, conseguiu discernir o que era — uma porta preta, de maçaneta redonda e prateada, suspensa no vazio, sem paredes, apenas um  vestíbulo de galhos. Estava ali, inanimada e enraizada no meio do nada.
 
Esticou o braço direito para alcançar a fechadura, mas antes que a sua mão pudesse tocá-la, o chão se abriu abruptamente num buraco atrás dela. A água policromatica começou a escoar, arrastando  Madalena consigo aos poucos, afastando-a da porta. Ela lutou, tentando agarrar-se ao chão escorregadio, mas era tarde demais. O seu corpo foi levado  para o abismo profundo e, enquanto caía, sua visão se apagou como a vastidão da noite.
 
O grito que ameaçou escapar da sua garganta tornou-se audível junto a um "parabéns para você" que estava sendo entoado por uma trupe jovial conhecida aos seus ouvidos. Eram os seus quatro irmãos, alinhados em fila, e o da frente segurava um bolo redondo coberto de chocolate, granulado prateado e uma vela simples, olhava espantado para a irmã.
 
— Caramba, que susto Madalena! — bradou, de testa franzida — Quase derrubei o bolo...
 
Madalena nada disse, ainda estava perplexa pelo sonho, pois, durante os seus vinte e quatro anos de vida passados, agora vinte e cinco, isso nunca havia acontecido.
 
Era sempre a mesma coisa — adormecia, e quando abria os olhos, o sol já invadia a sua vidraça e lhe beijava o rosto.
Mal conseguiu assimilar o que estava ocorrendo à sua volta naquele momento. Estava suada, com a mente a mil, e a maldita porta não saía de sua cabeça.

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⏰ Última atualização: Oct 21, 2023 ⏰

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sᴏɴʜᴏs ᴅᴇ ᴛɪɴᴛᴀ • ᴹᵒʳᵖʰᵉᵘˢOnde histórias criam vida. Descubra agora