Merengue e frutas da estação

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Não posso acreditar no que acabou de acontecer.

Todos no estúdio me olham boquiabertos.

— Suzane... Precisa de alguns minutos, querida? — a assistente de direção me pergunta com um tom aveludado. Porém, a olhadinha que dá para o lado, demonstra que está com medo da minha reação.

O que foi? Uma pessoa não pode ter um surto no meio da gravação de um reality de confeitaria, que todo mundo fica espantado?

Fecho os olhos e me concentro antes de falar qualquer coisa. Tenho que me lembrar do porquê estou aqui. E estou na final.

— Dez minutos, tudo bem? — digo tirando o avental inutilizado do corpo e vou direto para o camarim, sem fazer contato visual com ninguém.

Estava tudo bem. Até que o merengue na batedeira planetária explodiu em cima de mim, por eu não ter encaixado os batedores corretamente. No meu pânico para não perder tempo, eles se afundaram no merengue e eu me vi chacoalhando as mãos sujas e grunhindo como um animal no meio do estúdio.

Posso ter falado alguns palavrões depois que Rodolfo soltou uma de suas risadinhas sem graça, só para me irritar. Vi tudo vermelho escarlate na minha frente. Esse ser se acha o próprio mestre confeiteiro. E infelizmente, é meu rival. Como os jurados podem aceitar que em uma competição de confeitaria natalina, se faça receitas nada nacionais? É um ultraje para as minhas raízes! Reclamei, mas a direção me disse que estava dentro das regras. Temos mesmo que seguir receitas estadunidenses no Natal? A gente passa calor na cozinha na véspera, assando peru e fazendo farofa!

Pelo amor de Deus!

Abro a porta do camarim e me sento na cadeira. Pego alguns lenços umedecidos e limpo o pescoço. Por sorte, a dolmã não sujou. Em duas semanas teríamos o resultado passando na véspera de Natal, no canal de maior audiência do país.

Alguém bate à porta e eu digo que pode entrar. Não sou uma mulher amarga que todos odeiam... É só que me meti na competição por motivos mais fortes e agora estava ali, muito perto. Não podia perder.

— Podemos falar um minuto? — Rodolfo pergunta sem rodeios.

Rolo os olhos ao me levantar e limpo a sujeira do meu cabelo.

— Veio cantar a sua vitória antes da hora, Bond Boca? — pergunto, cansada, antes de ele se postar à minha frente. O apelido do personagem antigo dos comerciais de enxaguante bucal, vem da semelhança de Rodolfo com ele: queixo grande e cabelos pretos e brilhantes.

— Não faria isso. Pode achar que a vejo como uma inimiga — pontua, estalando a língua e neste contexto de competição até somos, mas percebo que está distraída. — Se aproxima, focando seus olhos nos meus. — A gente se conhece bem. Sei que essa não é você.

Nós estudamos na mesma escola de confeitaria anos atrás. Antes de ele se render às práticas internacionais de cozinha. E competimos desde então. Confesso que dá um gás a mais ter alguém no mesmo nível que você porque sim, Rodolfo é muito bom no que faz, mesmo que sua especialidade não seja a confeitaria brasileira como é a minha.

— Não queria estar aqui... — é quase impossível impedir que meus olhos nublem. — Meus irmãos estão fazendo um inferno na minha vida.

Rodolfo me abraça. É inusitado que ele seja a pessoa que me sinto confortável para falar sobre isso.

Minha mãe faleceu há dois anos. E tudo que sei sobre confeitaria, aprendi com ela. Meus irmãos não tinham a mesma ligação que tínhamos e o que importa para eles, é que a casa e a pequena doceria que temos, sejam vendidas e o inventário feito. E eu só queria o forno industrial dela para mim. Acontece que ele está na casa onde morava com ela antes de tudo acontecer e eles só atrapalham o processo.

Somos irmãos! Não quero o dinheiro, quero o forno.

Entrar na competição foi a forma que achei para conseguir dinheiro e pagar os encargos necessários. Mesmo que eu deteste tudo sobre essa competição, principalmente pelo tema natalino.

Deixo Rodolfo a par da situação.

— Não deveria dizer nada disso porque pode parecer que quero alguma colher de chá sua. — Me distancio, pegando uma garrafa de água e tomando um gole.

— Deixa disso, Suzane — desdenha com as mãos. — Não lhe quero mal. Sua luta é justa.

Semicerro os olhos para ele. Não sei se posso confiar em Rodolfo. Ele me parece sincero com suas bochechas rosadas e as sobrancelhas pretas e grossas, que formam um V em sua testa. As pestanas batem como asas de borboleta e o sorrisinho debochado está ali novamente.

— Vamos acabar com isso. — digo, saindo do camarim. Ele me acompanha e passa por mim com as mãos nos bolsos.

Voltamos à competição. Estou no preparo de um sorvete com frutas da estação. Para dar textura ao prato, faço uma farofa com o merengue, deixando pedaços menores, esfarelando acima do sorvete. Rodolfo faz algum tipo de panettone gourmet que não me apego aos detalhes. Sei que tem muito chocolate belga e frutas vermelhas.

A gravação de um programa demora bem mais do que o tempo da edição final, mas então, papel dourado, serpentinas verdes e vermelhas e muitas luzes caem sobre mim, enquanto seguro o troféu robusto em minhas mãos. Ele é só um símbolo. É esquisito gravar duas finais diferentes. Tenho que me tornar campeã sem saber se sou campeã, mas o que se repete em minha mente, enquanto sorrio para as câmeras, é que preciso do cheque de vinte e cinco mil reais que balança à minha frente. 

A Hater do NatalOnde histórias criam vida. Descubra agora