É uma tradição

20 2 15
                                    




— Será divertido! — diz ao bater as mãos no volante, acelerando pela via.

— Veio com um carro pronto para sequestrar um forno? — Seguro o refratário no meu colo como se minha vida dependesse disso.

Não houve jeito a não ser aceitar a ideia maluca.

Com um bico enorme, cheguei à rua e estranhei que Rodolfo apertou o alarme e uma caminhonete verde acendeu as luzes. Ele tinha outro carro de riquinho metido a besta.

— Óbvio. Sou um homem preparado. Não sairia de casa sem meu plano formado.

Por que Rodolfo está fazendo isso?

O forno é um problema meu. Uma lembrança minha. Pensei em pegar à força? Sim, mas sabia que não traria nada de bom para o relacionamento com os meus irmãos.

Idiotas. Bufo em indignação.

Aproveitando o semáforo, Rodolfo dá uma rápida olhada para mim e estende o braço para abrir o porta-luvas. Tira de lá uma case com talheres.

— Colher de emergência — explica. Em seguida, pega o pavê com uma delas e come. — Tá bem bom isso aqui.

Estou tão chocada pelo atrevimento que demoro a ter alguma reação. Assim que o semáforo abre, Rodolfo deixa a colher dentro do refratário. Só que esqueci de segurá-lo como antes. No primeiro movimento, o pavê cai todo aos meus pés.

— NÃO! — me curvo no banco pegando o refratário que respinga bolacha e creme no meu colo. — Olha o que você fez!

Eu? Você que não segurou isso direito! Que desperdício Suzane, sinceramente... — Rodolfo me dá um falso sermão, já que está se segurando para não rir.

Começo a hiperventilar e um bolo sobe pela minha garganta. Olho para fora e não consigo enxergar as formas que passam pela janela.

— Su? É brincadeira! — Rodolfo para no meio fio bruscamente.

Sinto ele tirar o refratário das minhas mãos e colocar em algum lugar. Não se importando em se sujar com o doce, segura as minhas palmas com força.

— Respira.

Permito que o ar entre devagar nos meus pulmões e solto com a mesma calma. Ele acena em incentivo. Aos poucos, consigo ver as coisas sem que elas estejam borradas.

— Muito bem — Rodolfo lambe o creme do dedão e sorri. — Nem vou brigar por ter sujado todo o banco do meu carro.

Solto a minha mão da dele.

— Tem alguma coisa aqui pra eu tirar essa sujeira?

Ele diz que tem uma garrafa de água e uma toalha na bolsa da academia. Me limpo do lado de fora do carro. Estamos próximos à casa da minha mãe e em como todo bairro residencial de São Paulo, há barulho pela vizinhança com festas e fogos explodindo antes da hora. Esses sons se fazem presentes ante o silêncio entre nós, já que Rodolfo dava um jeito no tapete do chão do carro.

Volta a seguir as instruções do GPS quando digo que podemos continuar. Ao entrarmos na rua, sou invadida pelas lembranças que falhei em evitar durante a noite toda. É onde vivi até o dia que minha mãe morreu e é a primeira vez que volto aqui. A rua tem casas com portões altos, outras com grades e muros baixos. A voz no painel avisa que chegamos ao nosso destino.

Engulo em seco.

— A gente pode só ficar por aqui... Não precisamos pegar o forno... — Rodolfo sugere.

Será que conto agora para ele?

— Não. A gente vai entrar. — Abro a porta decidida.

Resmunga um okay, ele dá a volta pela frente do carro. Eu encaro a casa. O quintal costumava ser lindo, mas agora está abandonado.

A Hater do NatalOnde histórias criam vida. Descubra agora