Os clássicos sempre foram meus favoritos. Lembro que, quando pequena, fui matriculada no balé e logo migrei para aulas de ginástica. Passava horas no salão me alongando e realizando movimentos aeróbicos com os cantores de décadas passadas discutindo versos melodiosos ao fundo, os jogando no ar e preenchendo o ambiente. Minha antiga professora, Daisy Flowers — um nome peculiar inclusive — dizia que eu tinha bom gosto. Na maioria das aulas me deixava colocar um de seus vinis antigos no tocador — minhas colegas morriam de desgosto, inveja talvez. Aquela foi a primeira vez que fui a estrela número um de alguém — da senhora Flowers — e a última também. Mas não importava. Eu nunca gostei de estar em evidência. Quando escolhi trabalhar em um dos piores lados da Virgínia no quesito clima foi porque eu sabia que eu poderia ficar, de algum modo, invisível. Ninguém me conhecia ou parava para me olhar. Eu era apenas mais uma mulher com armação grande ocular e roupas sem graça — o que contava mais ainda para que não quisessem me ver. O que eu gostava de evidenciar era a minha cara de doutora formada e centrada que trabalhava num sanatório. Bastava. Mas Damon Constantin encarava-me de um jeito que... Ele parecia querer saber além da casca grossa profissional. Estranhamente inquietante, já que nenhum outro paciente se importou em ao menos decorar meu sobrenome. Eu diria que ele queria me entender para abusar de manipulação.
Não tivemos consulta na quinta e ao chegar de Harkness fui a mercearia e mais tarde fiz o jantar — que seria guardado para o almoço do dia seguinte — e me deitei para dormir depois de assistir um programa de talk show. Não pensei nada indecente, mesmo assim meu subconsciente trapaceou com um sonho perturbador. Sonhei com mãos. Mãos que tentavam subir pelas minhas coxas e... Acordei na pior parte. Foi um sonho intenso. Intenso e errado. O relógio marcava que ainda era madrugada. Não consegui voltar a dormir. E o pior: eu conhecia perfeitamente as mãos dos sonhos, outro dia mesmo eu estava as enfaixando durante uma consulta.***
Mesmo que ninguém soubesse o que se passou e meu corpo estivesse mais coberto que nunca, tive a sensação de estar exposta ao passar pelo saguão do sanatório. Quis ir embora mal tendo chegado. As primeiras consultas do dia foram monótonas. Às vezes me peguei lembrando do sonho enquanto um paciente falava sobre andorinhas roxas ou o espírito que lhe ofereceu cerveja gelada dentro da cela. Frustrante. Fiz minha consulta com Constantin ser adiada para o horário do almoço, entretanto, eu não queria ir vê-lo, e mesmo assim me encaminhei para a cozinha e pedi para as cozinheiras esquentarem a comida. Todos os outros pacientes já tinham se alimentado e o refeitório estaria livre para nós dois. Organizei as louças com os alimentos pedidos metodicamente. Trouxe copos e colheres de material inofensivo para comermos. Alinhei-os — era desculpa para me manter focada enquanto ele não aparecia. Minha mente estava tão centrada na tarefa que, quando uma presença se impôs ao meu lado, não percebi até que uma lufada de respiração quente fosse jogada contra minha epiderme. Estremeci e pedi para que Deus tivesse piedade. Ele estava sentado ali, sem algemas ou camisa de força — como pedi. Os guardas ficariam de olho em tudo e preveriam qualquer gracinha.
— Hã? O que? Desculpe, estou um pouco avoada. — Ridiculamente odiável o jeito que eu estava. Contei mentalmente até três, respirei e inspirei.
— Eu dizia que os guardas devem me odiar mais. Sabe, houve um desentendimento entre mim e eles. Nada muito sério. Eu só precisava utilizar o banheiro antes de vê-la e eles não queriam me deixar ir, então fugi.
Fiz que sim.
— Claro, claro. Eu... hã... entendo. Todo ser humano precisa fazer suas necessidades fisiológicas, não? É compreensível. — Engoli a saliva para aliviar a secura da garganta e puxei um prato junto de talheres e o entreguei para que se servisse. Precisava comer. Isso ia mantê-lo de boca fechada por um tempo. — Eu fiz tudo que pediu. Vamos comer antes que esfrie.
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Ultraviolência
RomanceVolume I da Triologia Ultraviolência. Holly Queenie é psiquiatra num sanatório que trata de pacientes 'comuns' e criminosos. O pior tipo de pessoa e próprio estrume do estado reside entre as paredes dessa construção abandonada por Deus. Ma...