Capítulo 4: "Terapia"

398 28 6
                                    


    A psicóloga sorria para elas daquele seu jeito tão característico, preenchido de uma serenidade e tranquilidade tão grande que tornava o ambiente ao redor mais acolhedor. Dr.ª Alice recebia as duas mulheres no seu consultório particular, no ambiente exterior aproveitando a suave claridade do dia, sob o alpendre soalheiro que tinha no jardim da sua própria residência. Longe de querer estreitar demais os laços com os seus pacientes, até porque sabia que isso seria prejudicial para os atendimentos, a jovem psicóloga gostava de propiciar às pessoas que a procuravam necessitadas de uma orientação um espaço o menos intimidante possível. Naquele instante observava as duas mulheres, esposas uma da outra, que pela primeira vez haviam vindo juntas. Alice vinha acompanhando Luiza de perto desde a sua perda de memória, e agora, devido aos últimos desenvolvimentos com a aparente recuperação dessa memória e com tudo que isso envolvia, pensava que novos desafios iriam surgir, não somente para sua paciente Luiza, mas muito provavelmente para a esposa Valentina também. Assim, continuava sorrindo amenamente, observando as duas mulheres por cima dos óculos que pousavam delicadamente sobre o seu nariz.
    “A gente conversou um pouco sobre o que aconteceu”, era Luiza que falava titubeando um pouco no raciocínio. Parecia que de repente não se sentia tão à vontade com Valentina ali do seu lado. Valentina, por sua vez, se mantinha calada, se remexendo um pouco no lugar, dando indicação à psicóloga que estava desconfortável.    
    “Conversar pode ser um ponto muito positivo, Luiza,”, respondeu de forma ponderada, mas encorajadora. “Então,” ela continuou pausadamente, “o que você me está dizendo é que vocês conseguiram verbalizar uma para outra”, desta vez alternou o olhar expressivo entre Luiza e Valentina ao desenvolver a ideia em mente, “sobre os sentimentos ou emoções que esse acontecimento da perda do bebê causou ou … ainda pode causar em cada uma?”, concluiu, e como que tentando não dar muito peso à pergunta, desviou em seguida o olhar para o caderninho de anotações que tinha sobre as pernas, o pegando de volta, logo parecendo rabiscar aleatoriamente alguma coisa.
    “Bem… a gente …”, Luiza olhou para a esposa, parecendo tentar encontrar a resposta no olhar meio ausente desta. “Ah Alice.. a gente sabe que não foi fácil, que foi dolorido para as duas por diferentes razões.”
Alice acenou com a cabeça, demonstrando compreensão, mas após anotar alguma coisa, se voltou para a loira que permanecia em silêncio, com uma mão imóvel sobre a perna de Luiza. “Você concorda com isso, Valentina?”, a pergunta fez a mulher regressar à realidade. “Quero dizer, você concorda que foi dolorido pra ambas, mas por diferentes razões?”, elaborou, clarificando um pouco mais a questão. Valentina piscou, na tentativa talvez de organizar os pensamentos que viajavam pela sua mente apreensiva.
    “Sim, não foi fácil quando tudo aconteceu, mas desta vez será diferente”, Valentina respondeu secamente, contornando a questão. Alice percebeu que a mulher estava claramente na defensiva e que aquele assunto continuava a não estar arrumado. Olhou de novo para Luiza, tentando tirar pelo menos por aquele instante o foco de Valentina, e, voltou a perguntar: “É interessante o quanto o ser humano gosta de comandar, de estar no controlo, não é?”. As duas mulheres não responderam com palavras, apenas assentiram com as cabeças muito discretamente. “Porque assim … a gente tendencialmente cai muito naquele lugar do derrotado, muitas vezes da culpa mesmo. Eu visto o papel do culpado, porque eu quero me castigar, então eu mereço aquele sofrimento em que me afundo cada vez mais. Isso faz sentido pra vocês?”, atirou, reflexiva.
   
    Luiza’s POV

    Poucos minutos haviam passado desde o início daquela consulta e eu já estava me arrependendo de ter sugerido que a Valentina fosse comigo. Eu não tinha segredos para ela, mas senti-la assim tão distante e fragilizada me fazia sentir novamente o peso da culpa. Por mais que eu me tentasse convencer que não me devia sentir culpada, não conseguia aceitar toda a merda que havia feito para ela. Ela estava entrando no segundo trimestre de gravidez quando eu decidi surtar mais uma vez por ciúmes, mas o pior é que não foi um surto que apenas me prejudicou a mim. Se eu não tivesse tido aquele acidente de carro, provocado pela minha impulsividade estúpida, Valentina não teria perdido o bebê. Quando pensava nisso parecia até castigo por eu não ter desejado esse filho em primeiro lugar. Sentia o meu estômago se contorcer com a simples lembrança na casinha da árvore.
    “Isso faz sentido pra vocês?”, escutei Alice perguntar enquanto os meus pensamentos viajavam tão aceleradamente como aquele maldito carro. “Faz Luiza? Sentido?”, escutei-a novamente perguntar pela ausência de respostas.
    “É… faz sentido,” engoli em seco. “Mas e se esse papel de culpado for o certo?”, indaguei em tom mais baixo.
    “Você não é culpada, Luiza!”, Valentina disparou, agarrando a minha mão. Nossos olhares se cruzaram por breves instantes, brilhantes, molhados.
    “Porque você se acha culpada?”, foi a analista que perguntou, me fazendo pensar que isso era óbvio e que a pergunta dela não tinha o mínimo de cabimento. Ia começar precisamente por explicar isso, quando Valentina me interrompeu.
    “Lu, se é para falar em culpados, talvez a culpa seja minha. Eu fiz tudo nas suas costas”, admitiu condoída. Abri a boca, pronta para argumentar, mas acabei a fechando de seguida ao me dar conta que eu reconhecia aquilo como verdade. Ela havia montado tudo nas minhas costas, não quis saber do que eu pensava, e saiu simplesmente fazendo o que queria, me excluindo completamente de um assunto tão importante como uma segunda maternidade.
    “É…”, murmurei, contendo aquela emoção que me engolia por dentro e me fazia sentir raiva. “Você fez tudo nas minhas costas”, repeti, pestanejando, e com isso fazendo uma lágrima cair  e escorrer pelo meu rosto.
    “E o que isso faz você sentir?”, Alice perguntou sorrateiramente.
    “Raiva”, confessei, num misto de tristeza e rancor. No fundo tinha vergonha de admitir aquilo, mas eu estava sentindo muita raiva. Num primeiro momento, raiva de Valentina, minha esposa que não soube confiar em mim, mas logo depois, em maior intensidade, raiva de mim que não soube estar presente, que não soube controlar meus nervos, que não soube estar a altura da minha parceira, da mulher que eu dizia amar.
    “Luiza…”, senti o aperto novamente na minha mão. Valentina estava chorando naquele momento e apresentava um ar completamente miserável.
    “Isso é um começo”, a voz da terapeuta se fazendo novamente ouvir nos fez fixar nela. “Falar das nossas emoções, daquilo que estamos sentindo em determinado momento pode ser bom”, ela continuou explicando.
    “Ela tem razão em sentir raiva de mim. Não foi certo aquilo que eu fiz.” Valentina tornou a reforçar aquela ideia.
    “Compreendo.” Anuiu a terapeuta, escrevinhando mais um pouco no caderno. “Sabem que a culpa que todos nós sentimos em determinados momentos da vida é um sentimento normal e até benéfico até certo ponto. Porque pensem … se não fosse isso, como saberíamos em primeiro lugar que cometemos algum erro?”, lançou, introspetiva. “É um mecanismo que temos que causa todo esse sofrimento e angústia moral que nos permite sofrer como o outro sofreu e, dessa forma, nos fazer rever a nossa conduta futura. Ela será como um … nivelador, digamos assim. Compreendem?”
Tanto eu como Valentina acenamos, continuando silenciosas, encarando a psicóloga. Era mais fácil escutá-la do que ficar comentando sobre as nossas emoções.
    “Então é isso! Temos de aprender a utilizar a culpa desse modo saudável e não fazê-la se apoderar da gente de uma tal forma que nos paralise. Até porque é impossível controlar todos os fatores externos que nos envolvem, então não é lógico nos culpabilizarmos por algo que não está nas nossas mãos. Aí sim, toda a culpa pode facilmente evoluir para certas condições psicológicas graves como uma depressão ou estados avançados de ansiedade.” Alice pareceu terminar o raciocínio, dando espaço a um silêncio aparente, pois dava quase para notar o espaço ocupado pelo ruído dos pensamentos. Ela se inclinou sobre a mesinha que tínhamos à nossa frente e encheu os três copos do suco que estava na jarra, oferecendo com ar jovial: “Provem esse suco, leva abacaxi, maçã e gengibre. Fui eu mesma que fiz.”
    “Obrigada,” agradeci ao mesmo tempo que Valentina, não só pelo suco, mas pela mudança de assunto.
    “Bem meninas, eu penso que por hoje é suficiente.” Informou, tomando depois um longo gole de suco. “Vou dar a vocês uma tarefa de casa, se quiserem é claro!”
Nos entreolhamos num misto de curiosidade e apreensão, mas concordamos, tomando nota mentalmente do que seria a tarefa.

Stupid Wife: 2ª temporadaOnde histórias criam vida. Descubra agora