ᎴᎧᎥᏕ

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𝔒 som do motor me fez dar um solavanco assustado. A coisa tinha começado a se mover me balançando junto com a mercadoria — me sentia flutuando, foi uma sensação estranha se locomover parado. Coloquei minha cabeça para o lado de fora do plástico, olhei ao redor abobado com um pedaço de peixe pendurado na boca, estava me distanciando cada vez mais longe do local de antes.

Tentei ficar quieto mesmo com medo, e fui chegando para trás a cada pausa que o automóvel dava e uma caixa de peixe era arrastada para fora, até que ficou só eu embaixo do plástico preto e úmido. A caminhonete se locomoveu por mais uma hora previamente, até finalmente parar. Ouvi as ondas do mar sussurrando em meus ouvidos, confesso que fiquei retraído, havia voltado para os arredores da praia.

O que veio a seguir acho que foi a situação mais engraçada que já vivemos.

Escutei os passos se aproximando até a traseira do carro e logo senti o plástico sendo puxado. Foi aí que nós dois nos vimos pela primeira vez, da forma mais inusitada possível.

Você gritou, o que me fez gritar de volta pelo desespero, foi um surto caótico. Eu estava imundo e fedendo a peixe na sua carroceria, entendo perfeitamente o impacto. 

Puta que pariu, cara! Quem é você, o que faz aqui? — me perguntou com uma mão empalmada no peito, tentando tomar fôlego.

Fiquei alguns segundos paralisado diante sua fisionomia, sua beleza me fez orbitar por um momento. Assim que comecei a te analisar senti meu coração em descompasso, minha temperatura subiu. Sua pele negra reluzia com a luz do fim de tarde batendo diretamente em seu rosto e peito nu. Era a criatura mais bonita que vi na terra.

Olhei profundamente em seus olhos para poder lê-lo e sentir se poderia confiar em você — nós temos esse dom que felizmente não me foi tirada. Além da atitude ter sido a minha ruína, pois, acho que foi ali que me apaixonei, não vi maldade em sua íris escura.

Vi bondade e amor, era o que eu procurava.

— Hey! Está tudo bem? – me despertou do transe com um estalar de dedos.

Perdão, não queria te assustar  – levantei minhas mãos devagar, me mostrando indefeso.

Pode descer e me explicar o que faz aqui, por favor?

Obedeci em silêncio, mas sem tirar os olhos de seu rosto, e você, me analisava da cabeça aos pés quando começou a rir de repente.

Caralho, você é o pé rapado mais bonito que eu já vi, e está... minha nossa, fedendo a peixe!

Me assustei com a coincidente analogia, mas comecei a rir junto mesmo não entendendo nada, seu sorriso me causou isso.

Pé rapado? O que é?

Nada, desculpa, mas não consegui evitar. Olhe só para você...

Você tinha toda razão, Éder. A blusa e calça branca que haviam me colocado no hospital estavam marrons, meus cabelos estavam desalinhados, eu estava descalço e todo sujo.

— Vamos, desembucha, o que faz aqui?

Peço perdão mais uma vez pela invasão, não tinha para onde ir e eu estava com fome. Essa coisa que nos trouxe até aqui... — disse apontando o dedo para as rodas.

Com fome? Essa coisa?

É, não sabia que me traria até aqui...

Espera, calma. O que você quis dizer com "eu estava com fome"? Só tinha peixe fresco aí... Coisa? Está falando da caminhonete? Cara, nunca andou de carro?

ᴄᴇᴅᴏ ᴏᴜ ᴛᴀʀᴅᴇ • ᶜᵒⁿᵗᵒOnde histórias criam vida. Descubra agora