Capítulo 1

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PÉS DESCALÇOS E MALTRATADOS corriam pelas ruas de paralelepípedos molhados, com o máximo de cuidado para não escorregar. O motivo da correria eram os soldados que a perseguiam pelas ruas de Monte Fino. O pai a havia ensinado muitas coisas na vida, uma delas era correr para sobreviver e outra — que seria o que ela teria que usar logo —, a cobrar favores.

Os soldados corriam e gritavam palavras de ordens. Ela iria ser presa, e para isso não acontecer teria que cobrar um favor de uma conhecida. O problema era chegar até ela, pois a mulher trabalhava numa fazenda distante.

A cidade mal havia acordado e o comércio ainda estava todos fechado. O silêncio fazia com que os gritos dos soldados e os latidos dos cachorros parecessem ainda mais altos. Faziam, também, o coração dela disparar e suas pernas correrem ainda mais rápido.

Existiam poucas mulheres na cadeia de Monte Fino e ela não queria aumentar esse número.

Sua mente trabalhava rápido para encontrar uma forma de despistar os agentes que, insistentes, ainda a perseguiam. Virou uma esquina e encostou-se na parede da residência, respirando rapidamente. Apurou os ouvidos para tentar identificar onde os homens estavam e percebeu que continuavam em seu encalço. Analisou, por alguns segundos, todas as construções ao seu redor, formando em sua mente um trajeto rápido até a saída da cidade, mas as ruas eram muito largas e o sol brilhava intensamente naquela manhã, secando todo o barro e toda a água que se acumulou com a chuva da madrugada.

Ela percebeu que precisava se esconder por algumas horas, no mínimo, para poder continuar seu caminho. Viu uma carroça passar. Entendeu que os moradores começaram a sair de suas casas. Logo a rua estaria cheia e conseguiria se infiltrar entre as pessoas, contudo, ainda demoraria horas e precisava de uma fuga naquele momento.

Decidiu, quando ouviu os latidos na rua ao lado, entrar na casa em que estava se apoiando. Mesmo correndo o risco de ser vista pelos moradores, ainda conseguiria ludibriá-los um pouco. Puxou a janela de madeira que, ruidosamente, cedeu para o lado de fora e pulou para dentro. Por sorte, acabou na saleta. Um ambiente usado apenas pelas mulheres da alta sociedade, quando recebiam visitas femininas.

A cortina branca e o chão tinham sujado um pouco com a terra de seus pés. Ela tomou cuidado para não pisar no tapete que ocupava a maior parte do cômodo, uma vez que se considerava a mais cuidadosa dos ladrões do estado, nem esbarrar numa mesinha redonda que estava encostada no canto a sua esquerda com um vaso de porcelana em cima. Dentro, uma planta havia sido colocada para enfeitar o ambiente. O verde de suas folhas contrastava com o branco das toalhas e das xícaras dispostas na mesa central.

Abaixou-se quando viu que um agente da força pública passava exatamente na lateral da casa e percebeu que havia deixado a janela aberta. Ligeiramente, tratou de acalmar sua respiração para poder ouvir melhor o que se passava ao seu redor.

Conseguiu ouvir, no outro cômodo, o caminhar de alguém. Pelos passos, teve certeza de que se tratava de um homem, pesado, e provavelmente de meia idade. Notou que as passadas intercalavam com o bater de madeira no chão, o que indicava uma bengala.

Os mais difíceis de identificar e perceber, eram os escravos. Descalços e acostumados a caminhar silenciosamente para não incomodar seus senhores, dificultavam a vida da ladra.

Amanda conhecia a rotina das grandes casas, como aquela em que se escondia. Por diversas vezes, precisou estudá-las para escolher o horário quando cometeria o próximo roubo. Então, ela sabia que aquela saleta só seria usada a noite, ou se por algum acaso, a senhora da casa recebesse visitas para o chá da tarde. O que lhe dava algumas horas de possível descanso. Ajudaria, também, a traçar uma rota até a fazenda onde pretendia chegar.

Sentou-se no chão e se permitiu respirar fundo algumas vezes. Ela sabia que logo os agentes da força pública começariam a bater de casa em casa e algumas não poderiam recusar a busca por seus cômodos. Tentou se lembrar a quem aquela residência pertencia, mas não tinha certeza. Levantou-se, tomando coragem, e espiou para o lado de fora. Observando as ruas ao redor e seu movimento. Não viu nenhum perigo e, delicadamente, fechou a janela, deixando o ambiente na completa escuridão.

Mentalmente, repassou todas as ruas e vielas da cidade. Todas as construções e quem morava nelas, mas fortes pancadas na porta da frente tiraram sua concentração.

— Senhor, bom dia. Estamos buscando por uma perigosa fugitiva — ouviu a voz grossa do guarda. — Precisamos dar uma busca em sua residência, para sua própria segurança, peço que permita.

— O que está acontecendo? — Ouviu-se uma voz feminina.

Amanda não parou para ouvir o que respondiam, abriu a janela novamente e pulou. Naquele exato momento, um cachorro começou a latir e atraiu a atenção dos seus perseguidores. A ladra foi vista por um dos agentes que usou um apito para alertar os outros.

— Pare! — ele gritou.

Ela continuou correndo. Passou por uma carroça de verduras estacionada próximo à calçada, disparou entre jovens cavalheiros que fumavam e conversavam sobre a abolição da escravatura e subiu uma escada de ripas que estava encostada em uma parede. Agarrou na viga e impulsionou seu corpo para cima, chegando ao telhado antes que o primeiro agente passasse pelos rapazes que, agora, a observavam.

Não pensou duas vezes, correu para se distanciar daqueles que a caçavam. Pulou para o telhado vizinho e cruzou uma grande viga até outro prédio. Viu que o único agente que estava em seu encalço a perdeu de vista. O homem olhava ao redor com a mão sob a testa para tapar o sol. Aproveitou-se da luz que o cegava e entrou por outra janela aberta num grande casarão.

Precisava se livrar daquela camisola. Os guardas a tinham visto com ela e aquilo ficou marcado em suas memórias, ao substituí-la, poderia passar mais facilmente entre as pessoas. Analisou o cômodo, uma cama de madeira escura toda trabalhada, sob o colchão uma colcha delicada e bordada, no canto, um baú e ao lado um cabideiro. Percebeu que já esteve naquela casa. Há alguns meses, entrou ali para furtar um colar.

Abriu o baú e retirou um sapato, aguçou os ouvidos para saber se ninguém estava a entrar no quarto, levantou-se e caminhou até o armário. Despiu-se do que vestia e apanhou um vestido rosa-claro que estava pendurado. Certamente a dona sentiria falta e colocaria a culpa em alguma empregada, mas Amanda precisava se trocar.

Após vestir-se, a ladra olhou pela janela novamente, observando se havia algum agente procurando por ela ainda. A rua estava movimentada; carroças passavam de um lado para o outro, algumas estavam paradas, cobertas com tecidos amarelados e sem cavalos para puxá-las.

Amanda pensou por um instante. Precisava descer econseguir alguém para levá-la até a fazenda, onde poderia encontrar umesconderijo seguro por algum tempo. Tentou se recordar dos dias em que osempregados do Conde de Castro viriam a cidade, assim poderia voltar com eles,mas já fazia muito tempo que não tinha contato com Lurdes e não sabia secontinuavam com a mesma rotina. Contudo, resolveu arriscar.

Desejo e HonraOnde histórias criam vida. Descubra agora