Capítulo 4

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Houve paz e respeito

Mesmo com pães de mel devorados fora de hora, o jantar foi servido às seis da noite, como aparentemente era o costume no solar dos Peregrinos.
Ao menos na hora de comer, Jimmy e Matthew se concentravam em algo que não fosse discutir e, de qualquer forma, era impossível focar em algo que não fosse no porco e tutano acompanhados de bacalhau e queijo velho, crepe e torta de maçã. Céus, aquilo era um manjar divino de gostos e sabores que Nicholas sequer sonhou que experimentaria durante toda a sua vida. Mas, antes mesmo dele digerir o gosto único da carne, Ciprian se levantou com o prato intocado. Trocou um olhar com seus companheiros antes de deixar o cômodo, em silêncio.
Matthew e Jimmy, sentados um ao lado do outro, se encararam. O moreno ergueu a sobrancelha e o cacheado deu de ombros em sua conversa interna. Alice respirou fundo e Aletha pareceu não se deixar afetar pelo clima levemente tenso pairando pelo recinto, ao contrário de Nicholas. Tinha acontecido alguma coisa?
— Por que...—
— Não esquenta, Nick. A coisa mais rara do mundo é o Ciprian ficar pra comer. — Jimmy respondeu antes que ele dissesse qualquer coisa. — Me pergunto se o Ciprian come, na verdade. Isso é um mistério.
— Não seja um idiota.
— Nhem-nhem.
Aletha riu, mas isso não aliviou a confusão na cabeça de Nicholas. Por mais inaudível que fosse, seu passo era apressado e o olhar que trocou com os outros dizia alguma coisa.
E, como mágica, ele clicou.
— Vocês tinham algo para fazer antes de me ajudarem. Era isso, não era?
Ótimo. Ele tinha atrapalhado alguma coisa.
— Não, relaxa! — Jimmy virou a caneca de vinho de uma vez. Era o único bebendo álcool. — Eita, coisa boa... Bom, eram alguns problemas na Corte, sim, mas nada tão urgente assim. Estávamos mais matando tempo, mesmo. E tudo já foi resolvido, né, gente?
A mulher assentiu e Matthew resmungou.
— Eram só os inúteis dos Conselheiros, quem precisavam ser lembrados de como fazer o próprio trabalho.
— Matthew! — Alice tentou censurar, mas ele rosnou:
— O quê? Eu não minto. Eles não passam de uns sujeitos imprestáveis que ficam com a bunda na cadeira o dia inteiro e acham que mandam em alguma coisa. — Ergueu o garfo e franziu as sobrancelhas. — Para ser sincero, eu não sei como Sua Majestade come na mão daqueles babacas.
— Se alguém te ouve falando assim...
— Eu quero é que ouçam mesmo.
— Desabafo.
— Cale-se, Jimmy. E pare de beber, álcool fede.
Tomou o seu copo. Jimmy fez bico e Nicholas quase pensou que ele fosse chorar antes que voltasse a atenção para a comida. Ouviu Alice bufar enquanto balançava a cabeça e encarava os Peregrinos mais jovens.
Se segurando para não rir, decidiu deixar de lado antes que o Matthew revoltado decidisse falar mais e beliscou outro um pedaço de bacalhau. Tinha um gosto salgado. Um salgado bom, muito bom.
Alice foi a primeira a terminar, se retirando para o seu quarto depois de desejar uma boa noite. Matthew não demorou a se levantar e, após segui-lo para fora da sala com o olhar, Jimmy deixou o prato inacabado.
— Aletha, cuide do nosso menino de ouro aqui.
— Tá bom. — Murmurou, sem erguer a cabeça.
A sala de jantar se viu em um silêncio repentino. Não era desconfortável, porém Nicholas sentiu falta do debate anterior e da dinâmica de Jimmy e Matthew. Isso o fez pensar se Matthew estava bem, para Jimmy ir atrás dele sem nem mesmo terminar o prato.
Respirou fundo, passando a língua por dentro da bochecha para conter um sorriso. Esses dois agiam sempre como cão e gato?
— Você já terminou? — Aletha murmurou.
— Ah... — Ele acordou de seus pensamentos e voltou o olhar para a mesa. Ainda tinha comida para um batalhão, e ele tinha um batalhão em seu estômago... Mas seria melhor não abusar.
— Não se preocupe, eu espero. — Se recostou na cadeira.
Nicholas sentiu o rosto esquentar. Ele realmente era tão fácil de ler? Isso era, definitivamente, vergonhoso.
— Quando terminar, eu te levo. Tudo bem?
— Para onde?
— Mestra Alice me pediu para lhe acompanhar ao seu quarto.
— Ah, certo! — Se levantou, curvando a cabeça. — Muito obrigado.
— Por favor, não. — Riu. — Me sinto velha assim. Devemos ter a mesma idade, ou quase.
— Ah. Tá bom. — Se sentou novamente. — Eu tenho dezessete.
Aletha cantarolou.
Nicholas terminou seu prato no mesmo silêncio cômodo, repetindo um pouco de torta de maçã mais uma vez antes de se levantar e começar a juntar seus talheres.
Antes que continuasse, no entanto, Aletha se levantou. A garota tocou a superfície da mesa e as coisas começaram a levitar antes de virarem partículas, com a louça cara e até mesmo a comida se desintegrando como se nunca tivessem estado lá e deixando para trás uma mesa limpa como se nunca tivesse sido usada.
— Podemos ir?
Aquilo era algum tipo de magia de tempo-espaço? Não, primeiramente: como ela tinha feito isso? E para onde tudo tinha ido? Nem mesmo Rauf saberia um feitiço como esse, caso contrário, a primeira coisa que iria sumir seria a casinha de Nicholas. Então, como?
— Está tudo bem?
— Ah, sim...
Ela começou a andar e Nicholas olhou para a mesa mais uma vez antes de deixar a sala de jantar.
O segundo andar se dividia em duas alas: uma à oeste, e a outra, à leste. Aletha o guiou pela leste. Passaram por algumas portas nos corredores consideravelmente vazios, caso desconsiderasse os móveis de carvalho que sustentavam candelabros dourados iluminando o caminho de determinado em determinado tempo, além das lamparinas nas paredes e outros poucos quadros exóticos. O deus do amor mirava uma de suas flechas em uma silhueta encoberta que Nicholas não sabia dizer se pertencia a um homem ou uma mulher, ou mesmo a um cavalo. E a própria Morte estava assentada pacientemente enquanto o pêndulo da vida pulsava, esperando o momento em que carregaria a alma perdida ao Hades. Mas a que mais lhe chamaria a atenção não seria nenhuma dessas.
Sob a figueira, a criatura esquelética tinha a alma escura. O crânio no lugar de sua cabeça servia de abrigo para chifres de veado e os pelos em seu pescoço comprido estavam cobertos de sangue. Em seus braços, grandes demais para o próprio corpo, jazia uma mulher ensanguentada.
Diferente das outras pinturas, aquilo não era mórbido. Era assustador.
— Nicholas?
Aletha chamou, trazendo sua atenção de volta ao corredor.
— Ah, as pinturas. Mestre Ciprian tem um gosto requintado.
— Percebi... — Olhou para o quadro mais uma vez. Quanto mais encarava aquilo, mais as coisas pareciam tomar forma.
Balançou a cabeça, voltando para perto da garota.
— Eu... Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Você é uma aprendiz, certo?
— Exatamente.
Nicholas segurou um suspiro. Ah, como queria ser ele a dizer isso…
— Você está com os Peregrinos há quanto tempo?
— Nossa... — Ela sorriu. — Acho que uns cinco ou seis anos... É difícil ter noção de tempo com eles.
Nicholas engoliu a enxurrada de outras perguntas que queria fazer. Como ela virou uma aprendiz? Foi difícil? Teve algum teste? E como é ser uma aluna dos Peregrinos? Os treinamentos são difíceis? Como fez aquele feitiço na sala de jantar? Quais eram as suas habilidades?
— Entendo...
— Você pode ficar aqui. — Ela acenou para uma porta e lhe entregou a muda de roupas que segurava. Quando ela conseguiu aquilo? — Jimmy me pediu para te dar isso. Ele disse que é um presente.
Presente? De Jimmy? O que ele fez para receber um presente? E como, sendo que ele próprio não tinha visto Jimmy desde que o Peregrino tinha terminado sua refeição?
Certo. Ele estava divagando — mais uma vez.
— A sala de banho fica ao fim do corredor, então fique à vontade.
— Obrigado. Boa noite, Aletha.
— Boa noite.
Com um último sorriso, Nicholas entrou. E sentiu a visão ficar turva.
Aquele quarto deveria ter o quádruplo do tamanho da sua casinha, com a cama dossel enorme debaixo de uma janela de vidro maior ainda.
Ele olhou para a porta. Olhou para a cama. Olhou para a porta mais uma vez. Correu e se jogou no mar de plumas e lençóis brancos com cheiro de bambu.
Ele só queria gritar, pelos Deuses, esse era o melhor dia de toda a sua vida. Primeiro, ele conheceu os Peregrinos de verdade e em carne e osso. Foi salvo por eles, convidado a passar a noite e sentia a barriga pesada graças ao melhor jantar de todo o universo. E ainda tinham os pães de mel que, céus, eram maravilhosos. Agora sentia que não queria nunca mais ter que se levantar daquele colchão tão macio e aconchegante que lhe lembrava uma nuvem fofinha em formato de ovelha, em um quarto que parecia nunca ter sido usado antes.
— Eu estou em Elysion.
Virando a cabeça, pode ver que a decoração era um pouco mais sutil do que antes, o que deixava mais confortável, em sua opinião. Não havia nada de tão extravagante, na verdade, apenas a cama com cortinas brancas, um sofazinho de couro, uma penteadeira com espelho côncavo e a cômoda próxima à lareira. Super sutil. Para a elite.
Respirou fundo, encarando o teto. A diferença de vida era surreal.
Se sentou, balançando os pés para fora da cama, e encarou o monte de roupas. Certo, Jimmy o havia presenteado e ele nem sabia o porquê.
Não, será que Jimmy estava caçoando dele?
Se levantou em um pulo e encarou o espelho. Suas roupas não estavam tão ruins assim... Não, realmente estavam. Ele já não era a pessoa mais bem vestida, visto que usava a mesma camisa cinza, larga e manchada, e calças marrom puída roubadas desde os doze anos e, depois de tantos acontecimentos, o que era ruim tinha ficado pior ainda.
Bem, ele enfrentou guardas reais, tinha sido surrado por Rauf e seus amigos babacas algumas centenas de vezes e ainda tinha peitado um dragão. Sim, ele estava só o pó.
Respirando fundo, pensou se devia considerar. Antes de tomar uma decisão, porém, ouviu alguém bater à porta.
Mal tinha aberto quando foi puxado por um certo cacheado.
— Ji— Ele tapou sua boca.
— Shi! — Jimmy soltou, o arrastando para algum lugar.
— Ah, desculp— Tapou sua boca novamente, virando para encará-lo. Suas sobrancelhas estavam franzidas, mas ele parecia mais preocupado em evitar um riso do que qualquer outra coisa.
— Shi!
Nicholas assentiu. Jimmy retirou a mão.
— Shiiiii!
Tudo bem, ele já entendeu que era para fazer shi.
Indo para a ala oeste, teve que se segurar para não fazer outras mil perguntas e evitar que Jimmy fizesse “shi” mais uma vez. O que estava acontecendo, afinal?
Desceram uma pequena escada e chegaram até a cozinha, mas Nicholas não teve tempo de reparar em nada antes de ser empurrado uma porta adentro.
— O que...
Era uma sala consideravelmente pequena, mas isso não importava.
Haviam fardos de comida.
— Você realmente buscou ele? — Matthew estava escorado em uma estante repleta de potes de geleia amarelas e vermelhas. Além disso, Nicholas sentia cheiro de pão de mel e da mesma torta de maçã servida no jantar.
Eles não podiam estar pensando em...
— Eu falei que seria uma boa. — Jimmy riu, passando o braço pelo seu pescoço. — Bem, Nick, que tal um lanchinho da madrugada?
— Mas—!
— Na-na-ni-na-não! Não aceitamos “não” como resposta!
— Nosso ritual prega que só podemos sair daqui quando passarmos mal, e estando aqui, você automaticamente está incluso nisto. — Matthew jogou um pote que quase caiu no chão, mas Nicholas conseguiu firmá-lo com ambas as mãos. Estava semi-aberto, e quando puxou a tampa, sua boca encheu de água. Tinha cheiro doce e parecia doce.
— Esse é o nosso segredinho, combinado?
Ele assentiu.
Sim. Ele estava no Paraíso.

Despertar do Dragão: A Coroa de EspinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora