Missão Recebida
Niderwia, um pequeno vilarejo que abrigava um número razoável de habitantes, localizava-se na região centro-sul de Allencar. Onde pessoas manipulavam feitiços e criaturas sobre-humanas descansavam em florestas e rios, a vila era considerada uma das maiores províncias de seu reino, abrigando riquezas jamais vistas em todo o continente Norte.
De pouco a pouco, o início da primavera chegava, com as camadas da geada dando lugar ao verde primaveril não apenas naquele vilarejo. Nos quatro cantos de Allencar, o vento já batia contra lírios, fazendo com que dançassem com as borboletas e naturalmente acompanhassem o cantar dos pássaros e a risada das crianças que brincavam nos campos e bosques. O ar era invadido pela fragrância das flores enquanto a cidade estava cheia de turistas e— Bem, vamos começar a história:◈ ════════════ ◆ ════════════ ◈
— Ora, seu maldito! — O grito do comerciante pode ser ouvido de longe quando, em uma fração de segundos, um de seus pães foi levado por mãos leves. — Ladrão!
Quem não se alarmou foi empurrado do caminho, com os berros estridentes do vendedor de pães ecoando entre as barracas da feira. Talvez o ladrão tenha tentado se desculpar uma ou outra vez, mas isso não foi o suficiente para fazê-lo parar de correr — mesmo que não fosse identificá-lo entre aquele mar de vendas, vendedores e fregueses: um alguém cujo cabelo possui mechas isoladas tão verdejantes quanto esmeralda pura não era tão comum; mais ainda quando estas fogem-lhe do capuz e fazem pouco para ajudá-lo a se misturar. No lugar disso, algo realmente comum era aquele mesmo padeiro ter prejuízo por causa do mesmo garoto, que aproveitando a monopolização de toda a atenção pelo homem, não se contentou apenas com o pão como também passou as mãos pelo carrinho de maçãs e por um pote de geleia da barraca de temperos.
O gatuno não precisava olhar para trás para saber que o uniforme dos guardas reluzia o vermelho real enquanto tentavam abrir passagem para alcançá-lo, e ele continuou correndo, derrubando caixotes até chegar aos atalhos que só ele conhecia por entre as vielas daquela requintada parte de uma cidade tão comum.Quando chegou à uma colina distante, a feira e os amontoados de casas já pareciam brinquedos. Passou em um caminho de pedras por trás de uma cachoeira e só diminuiu o ritmo ao ver um casebre velho e abandonado, com o coração estalando em seus próprios tímpanos e o pulmão pedindo por socorro. Foi difícil respirar depois de tanto e impossível não parar para inalar o ar puro da montanha — independentemente do olhar dos pássaros escuros que rodeavam aquelas rochas o encarando como se estivessem debochando do seu cansaço (como acontecia literalmente em todos os dias da sua vida. Aves malditas, só esperando que ele morresse para se banquetear com o cadáver).
Ele se aproximou da casa em passos pesados e colocou as coisas no chão. Então puxou a porta corrediça, só para ver a madeira não se mover.
Fez força, mas isso mais pareceu piorar do que ajudar.
— Argh, isso tá ficando complicado... — Ele apoiou as costas na soleira, colocando o peso do corpo nos pés antes de empurrar o trinco com mais força. — Tenho que arranjar óleo, ou... — Um solavanco o jogou para frente. — Opa!
Se apoiou em suas pernas, com a leve risada nasal sendo involuntária. Teria sido constrangedor ser derrubado pela porta da sua própria casa.
Soltando ar, ele logo pegou a comida do chão e nao demorou para entrar, permitindo que seus olhos cor de âmbar vagassem brevemente pelo caos daquela sala enquanto tirava a capa e a jogava em um canto qualquer. Uma mesa de madeira trincada acumulava poeira no meio do cômodo, com uma cadeira de pé e outra jogada no chão. Na parede da esquerda, uma janela competia por espaço lareira de tijolos improvisada — leia-se: amontoado de tijolos velhos e uma grelha que ele nem se lembrava onde havia conseguido — e o balcão meio trincado estava lotado de tralhas velhas. Seguindo direto, uma pequena escada dava continuidade à construção, com o resto tão deteriorado quanto o início: o seu quarto, com um colchão e uma trouxa de roupas ganhadas, e um banheiro velho ainda sob a escada.
— Estou de volta!
E ele sorriu, mesmo não tendo ninguém para recebê-lo.
Indo em direção à mesa, o garoto varreu a sujeira com a mão livre ainda pensando em deixar a faxina para depois. Sabia que sempre dizia isso e que nunca tomava uma atitude, e esperava que uma hora sua motivação aparecesse e o obrigasse a fazer alguma coisa. Até lá, estava livre para procrastinar.
— Vamos ver: — Colocou o que conseguiu sobre a superfície. — Um pão duro do Tio da Padaria, uma geleia pequena de... frutas vermelhas? Que sorte! E mais duas maçãs da Vizinha. — Suspirou. — Hoje foi bom. Tenho o suficiente pra quatro semanas.
Era mais fácil conseguir alimento quando criança, percebeu. Mais uma vez. Não entendia o porquê das pessoas serem mais propensas a ajudar uma criança desamparada do que a um adolescente desamparado, mesmo em seu estado tão precário quanto. E o pior era que a falta de apoio sequer chegava perto de ser o seu maior problema quando, no auge de seus dezessete anos, Nicholas nunca conseguiria um emprego.
Nicholas. Apenas Nicholas — sem nenhum sobrenome ou lembrança familiar. Mas mesmo não só sendo abandonado aos nove anos como encontrado largado para morrer debaixo da cachoeira, sem se lembrar de nada e apenas com o seu primeiro nome ligando-o ao seu passado, tinha esperanças de que algum dia ele ainda iria reencontrar a sua família e entender o porquê de tomarem essa decisão. Com certeza havia um motivo para isso e ele iria descobrir, mas quando mal se tinha comida para sobreviver, realizar esse sonho ficava um pouquinho difícil.
O garoto respirou fundo mais uma vez, deitando a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa. Ela estalou com o peso de seu corpo e Nicholas recuou. Ainda não era o suficiente para quebrar, imaginou, antes de se deitar de novo.
Por que ele tinha que crescer? Quando era criança, as pessoas gostavam dele e o ajudavam em troca de favores, mas quando fez quatorze anos e descobriu que os seus feitiços sempre falhavam não por falta de prática, e sim por não ser capaz de usar magia, tudo o que tinha desabou e ele serviria de chacota pelo resto de sua existência imprestável. E não adiantava continuar treinando ou se tornar um exímio guerreiro já que as pessoas nunca viram — e nunca veriam — o seu esforço; nunca veriam que ele tentava.
Nunca veriam que ele queria ser alguém.
Ele era apenas o idiota sem-magia que nunca seria como os outros, com aquelas habilidades aperfeiçoadas e técnicas incríveis que ele jamais alcançaria. Como o fracassado fútil e sem utilidade que nasceu para ser.
Agora, a única coisa de que ele precisava era de um trabalho. No entanto, ninguém iria, e muito menos queria, empregar uma aberração. Por que ele tinha que ser assim? Às vezes, bem às vezes, chegava a pensar que foi abandonado por desgosto. Talvez seus pais já sabiam do defeito e não queriam uma desgraça na família.
Sua vida era tão ruim quanto a de um protagonista de uma trilogia de livros de fantasia.
Bufando, estalou a língua enquanto tirava um pedaço do pão e o colocou na boca antes de juntar tudo no cantinho da mesa. Cantarolando uma melodia fraca e sem ritmo, ele foi até a janela, abrindo-a e decidindo finalmente começar uma arrumação — aproveitaria e consertaria aquela maldita porta emperrada. Então Nicholas deixou que a luz preenchesse os cantos mais sujos da casa, observando a montanha e sentindo o cheiro da cachoeira encher suas narinas. Pelo menos do seu jardim ele jamais teria reclamações.
Foi naquele momento que uma figura fez-se presente em seu campo de visão e ele franziu o cenho antes mesmo de reconhecer quem era. E, por um momento, preferiu que os guardas da cidade tivessem rastreado o seu esconderijo ao ter que lidar com aquilo.
Bateu a janela.
— Hey! Nicholas!
Um gemido deixou os seus lábios. O que ele tinha feito para merecer aquilo em específico? Os deuses estavam contra ele?
Respirou fundo e abriu uma greta pequena, apenas o suficiente para ver a camisa branca, botas chiques e calças de couro recém lavados do guarda real. Sua pele estava um pouco queimada de sol e o cabelo escuro brilhava sob a luz de uma maneira mágica, como se de um próprio príncipe se tratasse mesmo em frente a escória. Como sempre.
— O que você quer, Rauf...? — Nicholas também queria ter perguntado se ele realmente iria gastar sua folga medíocre atazanando um pobre coitado, mas preferiu manter o resto de dignidade que lhe convinha.
Rauf era o melhor guerreiro de Niderwia; não somente por ser um dos únicos que passou no exame como por ter a lendária honraria de trabalhar diretamente no Exército Vermelho — além de ser noivo da beldade do vilarejo. Estaria tudo bem se ele não fosse a encarnação do orgulho e a arrogância em pessoa. E ainda seria suportável se Nicholas não fosse... Bem, ele.
— Você estava procurando uma oportunidade de emprego, não estava? — Sua voz melódica quase cantou e o esverdeado revirou os olhos.
— E daí?
— “E daí” que eu tenho uma oferta pra você.
— Qual oferta?
— Primeiro você precisa demonstrar interesse! — Soltou uma baixa risada, colocando as mãos na cintura. — Oras, é importante. Não posso simplesmente contar a qualquer um.
Rauf cruzou os braços, brincando com o medalhão preso ao cordão em seu pescoço. Mantinha um sorriso caloroso que Nicholas quase acreditaria caso não conhecesse o homem de longas datas.
Sua perna ainda era dolorida graças à última surra que tinha levado do seu grupinho de amigos babacas.
— Passo. — Não precisou pensar muito para responder. — Do jeito que você é, é capaz de me mandar para uma missão suicida.
Novamente se moveu para fechar a janela, esperando que isso levasse Rauf embora assim como ele tinha levado a sua animação.
— Posso te pagar uma vida inteira, Nicholas.
Nicholas parou. Ele tinha escutado direito?
— Falo de muito dinheiro, — Rauf completou. — o suficiente pra você viver bem e sem trabalhar por toda a sua vida.
Nicholas se culpou por se sentir tentado ao ver o sorriso de Rauf se alargar. Ele tinha percebido o seu interesse momentâneo, e isso era ruim, muito ruim.
— Quando a isca é muita, o peixe desconfia. Não vou cair na sua conversa.
— Não é conversa e não adianta negar: você ficou interessado na minha oferta, sim.
Encarou-o por um momento, procurando qualquer sinal de blefe. Sabia que Rauf era convincente e sabia mais ainda o quão hipócrita ele poderia ser. Mas o suficiente para ele viver bem, durante toda a sua vida…
Podia ser arriscado, mas...
— Não vai nem mesmo querer me ouvir? — Ele propôs mais uma vez e o esverdeado hesitou. Talvez só ouvir o que ele teria a dizer não fosse uma má ideia. Sem fidelidade e sem compromisso: apenas ouvir, sua mente induziu.
Respirando fundo, ergueu o olhar mais uma vez.
— Certo. Apenas ouvir. — E assim, fechou a janela.
Não vendo o sorriso cínico que se ergueu dos lábios do outro, no entanto.◈ ════════════ ◆ ════════════ ◈
— Diga logo, não tenho o dia inteiro. — Apressou enquanto cruzava a soleira da porta, de braços cruzados e uma carranca aborrecida.
— Você sabe sobre a lenda do dragão, certo? — Rauf começou, prendendo sua atenção. — A criatura que dizem viver nas colinas à Sudeste.
— É claro que eu sei, — comentou. — eu o vi quando tinha quinze, mas ninguém nunca acreditou em mim. Ele está lá.
— Certo, certo — Rauf cortou, revirando os olhos para as lamúrias de um jovem negligenciado. — Há alguns dias, mandei subordinados investigarem sobre o assunto... Apenas por curiosidade, sabe? — Emudeceu os lábios. — Nenhum deles voltou.
Nicholas piscou, sentindo o estômago revirar.
— A lenda é real, Nicholas.
Pessoas de Rauf morreram. E ele não sabia se ficava surpreso pela recém-descoberta ou enojado por ele parecer que não poderia se importar menos. Aquele babaca sequer contou às famílias, afinal?
— Eu avisei. — Não pode deixar de dizer, engolindo o gosto ruim em seus lábios.
— O trabalho que eu quero que você faça é exatamente esse. — Nicholas soltou um som de confusão. — Quero que cace o dragão.
E Nicholas começou a rir, enquanto engasgava com a própria saliva e erguia as sobrancelhas. Rauf era um idiota se pensava que ele seria burro a esse ponto.
— Você tá louco?!
— Você mesmo disse que já o viu uma vez.
— Sim, mas foi apenas de longe! — Gesticulando, colocou uma mão na cintura. — Isso é realmente uma missão suicida.
O semblante do outro ficou sério enquanto ele abaixou as mãos, escondendo-as atrás do corpo.
— Estão pagando dez mil moedas de ouro pela pele daquele dragão.
Nicholas travou.
— Dez… Mil...? Dez mil... de ouro? — Se culpou por gaguejar. — mesmo?! Rauf, isso é dinheiro pra dedeu, você sabe.
— Sim. Eu conversei com alguns comerciantes da minha extrema confiança, e eles disseram que, se alguém conseguisse capturá-lo, esse seria o preço mínimo de sua pele. — Sua voz era sugestiva, mas Nicholas não se importou. Sentia a pressão cair e a cabeça girar; se aquele era o mínimo, quanto seria o total, então? Deveria ter tantos dígitos que ele não conseguiria contar e–
Alguma coisa estava errada.
— Se vale tudo isso, por que você veio falar comigo? — Apontou o indicador no peito de Rauf e continuou: — Poderia muito bem ter ido sozinho até lá e o capturado, você mesmo.
— Você foi o único que o viu pessoalmente e sobreviveu. — Justificou.
— Por Deus, eu estava longe!
— Mesmo assim, você o viu. Sem contar que suas habilidades com armas são excelentes.
— Isso não é justificativa. Não vou cometer suicídio. — Abaixou os braços — Isso, se o que você falou é verdade.
Se virou, andando até a porta de sua casa. Era besteira, disse para si mesmo. Ele tinha que convencer aquela pontada de interesse que ainda se mantinha de pé.
— Eu te darei oitenta e cinco partes do que conseguir. — Parou de andar. Ótimo, Rauf tinha sua atenção mais uma vez. — Eu quero te ajudar, Nicholas. — Ouviu-o se aproximar e pôde imaginar o cenário dramático pelo tom de sua voz: — Você é o único da nossa antiga turma que ainda não tem um futuro. Todos já estão comprometidos e têm suas vidas feitas, menos você. Pena, dó, compaixão, chame como quiser. Eu só digo que quero te ajudar.
Nicholas estava em um dilema interno sobre se devia aceitar ou não. Sim, aquilo poderia ser uma missão suicida, mas se sobrevivesse, nunca mais passaria falta de nada e teria fartura durante o resto de seus dias. E poderia procurar por sua família.
E ele estava tão, tão desesperado por isso.
Abaixou a cabeça e encarou suas mãos, fechando-as com força. Ele podia morrer ou ficar rico. E isso só dependia dele.
— Eu sei que é uma decisão difícil então posso te dar um tempo para pensar e depois—
— Quando posso me preparar?◈ ════════════ ◆ ════════════ ◈
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Despertar do Dragão: A Coroa de Espinhos
FantasyMagia e espada; ferro e mana. Onde Nicholas, um ladrão órfão e sem poderes que nunca teve a oportunidade de mostrar algum valor ao sempre ter sido rotulado como um inútil, aceitou um trabalho suspeito que o prometia a oportunidade de mudar de vida...