13. Delação premeditada

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Nunca me senti tão mal. Dói tudo dentro de mim. Como se eu estivesse sendo virado pelo avesso à imagem de um casaco que a gente enfia a mão na manga para puxar para fora. Ao invés da manga sinto como se estivessem puxando meus intestinos, meu fígado, meus pulmões, fico sem ar e dói, e tento pensar em outra coisa.

Na poltrona ao lado o sujeito lê um livro sem se dar conta do meu mal-estar. Quando cheguei ele já estava sentado. Coloquei minha maleta no compartimento superior e ele se levantou para que eu me sentasse no meu lugar à janela do avião.

Sempre gostei de viajar na janela para ver o mundo de cima, a aproximação e a aterrissagem. Me dá prazer sentir o frio na barriga no momento da decolagem. No início tinha medo. Garoto matuto, fui voar pela primeira vez aos dezoito anos de idade. Depois me acostumei, mas sem nunca deixar de sentir o tal frio na barriga. Agora tenho um inverno na barriga, entranhas e cérebro. Tudo gelado, paralisado, e não é de medo de avião. É medo do que está por vir. Seria até bom se o avião caísse. Acabava de vez com essa droga de vida.

***

Conheci José Armindo antes mesmo de aprender a falar. Minha mãe é madrinha dele e a mãe dele me batizou. Melhores amigas e vizinhas de porta em Barreiros do Norte, no interior do interior do Nordeste do Brasil, que durante anos foi tudo que eu conheci do mundo. Ele, filho único, e eu, o quarto na linha sucessória, mas primeiro no coração do meu pai que teve que esperar anos pelo primeiro filho macho engolindo a decepção da chegada de três filhas mulheres antes que minha mãe acertasse a mão, como ele dizia, como se a escolha do sexo fosse atribuição da mãe da criança.

José Armindo não tinha irmãos e vivia em nossa casa. Preferia o aperto de um quarto pequeno dividido comigo e a comida contada numa mesa onde comiam seis ao seu conforto de filho único na melhor casa e mais farta mesa da vizinhança. Sua mãe, minha "dinda", ficava genuinamente constrangida com aquela situação e dava um jeito de fazer chegar aos meus pais o que pudesse sem tornar óbvia a ajuda. Sempre me convidava para dormir em sua casa, mas o formalismo do pai do Armindo me deixava pouco à vontade. Alguma coisa naquela casa me oprimia e não foram poucas as vezes que vi minha madrinha chorar.

José Armindo tinha um tipo de inteligência que eu invejava. Ele, por sua vez, invejava a minha, que me permitia ser o melhor aluno da turma e tirar as melhores notas sem precisar estudar muito. A genialidade dele consistia em decorar rostos e nomes, o que cada um dissera do outro, quem era amigo de quem, e usar essa rede de conhecimentos e conhecidos em benefício próprio. Intuitivamente empregava as frases adequadas com as pessoas certas falando exatamente o que queriam ouvir, exaltando o melhor de cada um e se fazendo estimado. Seu pai era político, foi eleito várias vezes vereador, e talvez José Armindo tivesse essa facilidade de agradar os outros nos genes. Quanto a mim, devo ter puxado a memória e o raciocínio lógico de um antepassado distante pois meu pai chegava a ser simplório e minha mãe contava com um cérebro de tamanho inversamente proporcional ao imenso coração. Ao invés de competirmos, concluímos - inteligentemente - que mais valia nos aproveitarmos, um, das facilidades do outro, e nossa amizade de meninos seguiu cada vez mais forte pela vida afora. Meu benefício imediato foi ter escola particular paga pelo meu padrinho, convencido pelo filho de que seria muito melhor ir para a cidade grande com um amigo do que sozinho. Meu pai engoliu o orgulho e aceitou de bom grado o oferecimento do compadre. Passei a ser a esperança de toda família, a ponte para um futuro melhor.

Mudei-me com José Armindo e seus pais para Recife. De uma hora para outra virei homem. Deixei minha casa, meu quarto, três irmãs que me mimavam e pais que eu adorava. A imagem que guardo desse parto simbólico é a dos meus pais abraçados, minha mãe com lágrimas nos olhos e minhas irmãs acenando em frente à nossa casa, cada vez menor à medida que o carro se afastava.

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