Os domingos definitivamente eram os meus dias, entediantes e monótonos o suficiente para me deixar em paz, coincidindo com a minha mente que se encontrava mais vagarosa que o normal.
Puxei uma mexa de cabelo. Click
Mais uma. Click
Próxima... Click
Click, click, clickNão sabia quantos tinha feito, mas no final estava satisfeita com o resultado do meu cabelo, curto e leve como eu gostava.
Balancei-os levemente com os dedos juntamente com a cabeça, no fim todos os fios vermelhos estavam no chão e o cabelo completamente preto.
As mudanças fisicas sempre fizeram sentido para mim, talvez até mais que qualquer outra coisa na minha vida.Do outro lado do quarto Daniel estava na janela, olhando pro outro lado da rua tão tranquilo quanto jamais esteve nos últimos tempos.
-Gostei do corte, ficou bem a sua cara. -Lívia entrou jogando a barra de chocolate pra mim. -Pensa rápido
Olhei rapidamente para conferir se era amargo como eu tinha pedido, porque era assim que eu gostava. Doce e amargo.
-Hoje faz um mês. -Falei sentando na cama.
-Cara, você deveria esquecer isso, sério. Talvez o choque tenha te feito imaginar todas essas coisas. -Lívia disse deitando. -Gente morta? Fala sério.
-É sério, Liv... E tinha um cara no dia, ele também viu, juro!
-E cadê ele agora?
-Ele sumiu, Roberto disse que nunca viu ninguém parecido por lá... Mas eu não sei, não confio nessa gente. -Falei tateando pela cama onde estaria o meu celular.
Desde o último ocorrido com Helena, eu não havia visto nada fora do normal, Luan continuava aparecendo mas sempre por um breve momento e eu já não tinha tantos pesadelos. Lembro de ter retornado a consciência pouco depois, mas estava sozinha no chão e apenas Daniel chamando por ajuda.
-Certeza que não viu nada? -Mirei o olhar no loiro descabelado que não saía da janela.
-Absoluta, eu voltei pra fechar a porta do carro e te vi convulsionando no chão. Sozinha. -Ele desceu da janela. -Esse tipo de delírio é comum de acontecer, não vamos mais falar disso...
Estávamos ouvindo "Meu erro" de Paralamas do sucesso, que era a música favorita de Liv, ela estava com os olhos fechados balançando a cabeça lentamente, com os cachos longos e definidos espalhados sob o meu travesseiro.
"Mesmo querendo eu não vou me enganar
Eu conheço os seus passos, vejo os teus erros
Não há nada de novo, ainda somos iguais
Então não me chame, não olhe pra trás"Levantou, rapidamente me puxando com um dos braços e atravessando o quarto para puxar também Daniel quando chegamos ao refrão novamente, todos cantando em coro, alto e desafinado.
"VOCÊ DIZ NÃO SABER O QUE HOUVE DE ERRADO/ E O MEU ERRO FOI CRER QUE ESTAR AO SEU LADO BASTARIA..."
-Ah meu deus era tudo o que eu queria -Cantávamos todos ao mesmo tempo -Eu dizia o seu nome, não me abandone JAMAIS
Eu não sabia dançar, confesso... Nunca fui boa com os passos tradicionais de qualquer dança comum ou popular, mas quando se tratava do rock nacional, não tinha como se segurar, todas as inseguranças e problemas desapareciam automaticamente... Eu me sentia feliz.
Sabia que tudo era fase, a vida inteira seria uma, já havia me acostumado com a quebra de ciclos e por isso me permitia ser consumida por completo.
Quando a faixa mudou para "Nota de Voz 8" de Jão, Lívia correu para pausa-la.
-Acho que basta, né? -Ela riu, descabelada.
Ela tinha razão, as músicas de Jão tinham um efeito catastrófico em qualquer ser sofrente e sentimental e eu sabia que aquela em específico lembrava uma pessoa da qual ela não gostaria de recordar naquele momento.
Direcionei o olhar para a janela e vi o carro preto entrar na rua e parar na frente de casa.
-Ele chegou. -Olhei para Daniel
Cinco minutos depois todos estávamos sentados no sofá de casa, o delegado havia chegado.
Ainda de uniforme ele se aproximou de cada um de nós e estendeu a mão num cumprimento firme -e frio
Inclusive para Daniel, que há segundos atrás se esforçava para limpar o lápis de olho preto no canto inferior dos olhos.-Como as moças estão? -Ele perguntou pondo as duas mãos na cintura
O delegado era um homem rígido, fechado e de pouquíssimo senso de humor, sempre apático (quando não estava de mal humor)
Lívia e eu ríamos da escassez capilar que ele apresentava no topo da cabeça quando ele não estava. O delegado era branco e calvo.-Estamos bem, senhor Nunez. -Tomei a frente -Viemos estudar com Daniel.
-Estudar? -Ele nos mediu de cima a baixo -É... Sei
E saiu subindo as escadas com seus sapatos pesados e barulhentos.
Daniel respirou fundo e pôs as mãos no rosto. Dava pra notar todo o seu corpo tenso com a simples presença de seu pai, era assim todas as vezes, nisso a gente se entendia bem.
Quando Kelly, a irmã de Daniel, cruzou a sala Lívia automaticamente levantou do sofá.
-Acho que já está na minha hora... Eu preciso ir. -Ela beijou Dan na testa e a mim no queixo.
E em poucos segundos ela já havia partido.
Kelly não voltou a aparecer, apenas deu um olhar indiferente e subiu as escadas, na direção em que seu pai foi.
Nos entreolhamos antes de também levantar.
-Eu preciso fumar. -Ele disse
-Casarão? -Perguntei ao mesmo tempo em que já sabia a resposta.
●●●
Meia noite. Era meia noite. A casa velha e empoeirada do outro lado da cidade estava repleta de fumaça, eu não sabia se por causa das janelas fechadas ou da quantidade de cigarros fumados por apenas duas pessoas.
-O câncer vem... -Luan apareceu no meio da "Névoa"
Sua imagem naquele momento parecia mais firme que em qualquer outro momento, ainda com sua camisa branca abotoada e o cabelo tingido, no estilo punk.
-Você sumiu. -Falei apoiando um dos pés na parede desbotada.
-Não precisava aparecer. -Ele respondeu
Todo o meu corpo se arrepiou instintivamente, cheio de calafrio.
Daniel já tinha ído embora e eu achava que estava completamente sozinha, apenas achava.Luan raramente dizia algo, apenas aparecia e ia embora, sempre.
Respirei fundo e fechei os olhos, finalmente adormecendo.Abri os olhos e já não estava no casarão, olhei ao redor e vi os meus pés afundando na grama molhada, senti o toque gélido em meus ombros me envolvendo num abraço.
Helena
Ela me olhou sorrindo e voltou a me abraçar apenas para sussurrar em meu ouvido, lentamente.-Não acabou, Amanda... Eu estou indo porque outros virão, eu não fui a última nem a primeira. Pode encontra-los?
Assim como veio, ela sumiu e eu me vi completamente sozinha em um dos jardins do orfanato, frente a frente a com o corpo de uma outra pessoa, dessa vez havia um homem.
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DOCE AMARGURA
RandomUma onda de assassinatos atinge Rosa Negra, todos com a mesma coisa em comum: Suas vítimas vivem ou viveram no orfanato Esperanza, administrado pelo atual prefeito da cidade e sua família. Amanda Esperanza é a filha do prefeito e leva uma vida compl...