capítulo VI - Parte de algo

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Emma Denner nunca fui do tipo de pessoa que acredita no sobrenatural. Durante toda sua vida, ela nunca sequer tive uma religião. Nunca acreditou em nada além da infelicidade que parecia rondar sua vida como um caçador, analisando sua presa, sempre à espreita, aguardando o momento perfeito para o abate.

A jovem sempre considerou a fé uma coisa tola, algo que as pessoas precisam acreditar para darem sentido às suas existências patéticas e tristes, um consolo para as vidas que serão esquecidas depois que partirem desse mundo. Para todos os efeitos, a religião para ela sempre foi uma forma de controle social, uma maneira abstrata de manter o caos preso a coleira da promessa de algo maior, imortal. Apenas uma esperança tola para almas desesperadas, incapazes de compreender que nada nesse mundo é de fato permanente, inclusive a vida.

Então por que o conteúdo da sua alucinação pareceu tão verdadeiro?

Seus pulmões ainda ardiam dolorosamente pelo afogamento, sua cabeça ainda latejando incessantemente, quase levando Emma a loucura. Mas mesmo assim, ela ainda tentava encontrar algum sentido, ainda buscava compreender seus pensamentos caóticos.

Ela tinha certeza de que havia morrido naquele ritual. A garota pôde sentir a vida se esvaindo do seu corpo, o modo como sua alma foi carregada para uma outra dimensão, sua essência separada dessa terra. A visão que teve foi seu fim, o tipo de presente que só se é dado com o preço de uma vida, um sacrifício.

Mas Emma ainda estava viva, ainda estava respirando. Como, em nome de tudo que é sagrado, isso é possível?

A garota despertou ofegante e com os olhos vidrados, implorando por ar como um moribundo implora por misericórdia ao seu carrasco. Tão fraca e indefesa quanto um recém nascido dando seus primeiros suspiros.

O lugar em que Emma foi colocada era escuro e úmido, com nenhum som além da sua respiração e das gotas que pingavam incessantemente ao seu redor. Ela estava deitada em uma superfície dura e gélida, com o peito posicionado para cima e os dois braços esticados, formando uma cruz.

Ela havia perdido a noção de quanto tempo havia ficado ali, parada na mesma posição sem se mover um milímetro, completamente imóvel com o assombro.
Dias, horas, alguns minutos. Emma não fazia a mínima ideia.

Era tudo simplesmente demais para se absorver.

A porra de bruxas. Ela era isso que as mulheres que a sequestraram eram, aparentemente. Bruxas sanguinárias e assustadoras. Do tipo presente apenas em contos de fadas macabros e mórbidos, feitos para aterrorizarem crianças desobedientes.

Mas isso não era um conto de fadas, Emma tinha certeza. Isso era a vida real, de alguma forma absurda e inexplicável pela lógica. Aquele pesadelo era muito real, assim como tudo de ruim que já aconteceu em sua curta vida.

O som de passos ecoou ao seu redor, mas a jovem não deu a mínima. Eles ficaram cada vez mais próximos, até que a mulher idêntica a ela parasse sob sua linha de visão.

A jovem encarou a sombra que pairava sobre ela com apatia, seu exterior com a aparência de uma casca oca e confusa, enquanto analisava cada traço daquela que a havia torturado apenas algumas horas atrás.

Igual. Ela era uma versão mística e madura de Emma, com uma graça e poder que apenas a imortalidade poderia conceder. Os mesmos lábios, mesmo nariz, mesmo rosto. Elas eram praticamente clones uma da outra, sendo o poder emendando em ondas da anciã o único diferencial entre elas.

- Vejo que finalmente despertou, minha pequena. - Maeve disse com sua voz gélida carregada com o que parecia ser carinho, de maneira que soou tão natural quanto os conservantes dos alimentos industrializados que se tornaram a base da alimentação da jovem.

Seu corpo pairava sobre Emma como uma sombra, mas não ousou esboçar nenhum tipo de reação ou movimento.

Nada mais importava, não depois do que presenciou. O que lhe foi revelado é algo que a mudou, que fez com que algo girasse dentro do seu coração, a afetando de dentro pra fora, ultrapassado todas as barreiras da sua mente e se infiltrado por debaixo da sua pele.

- Você passou por tanta coisa recentemente, pequena. - Ela sussurrou próxima ao rosto da jovem, levando uma das mãos de porcelana até a face trêmula de Emma, acariciando suavemente a pele naquela região. - Deixe que suas semelhantes curem as dores em seu coração, que a amparemos. Nós a ajudaremos, pequena Emma, e nunca vamos te abandonar.

A garota fechou os olhos com força enquanto as palavras que a tia disse borbulhavam dentro de si, se repetindo na sua cabeça uma e outra vez.

Semelhantes. Isso significava que Emma era uma delas.

O reconhecimento a atingiu como uma avalanche, causando um remexer estranho no seu peito, acelerando o ritmo do seu coração descompassado. Um misto de pavor e alívio tomou conta dos seus sentimentos, ambos lutando bravamente um contra o outro em sua mente, decidindo o que fazer com essa informação.

Emma Denner nunca havia sido parte de nada além da sua família. Nada. E mesmo entre eles, ela sempre sentiu que havia algo de errado consigo mesma.

Emma nunca se sentiu normal. Sempre pareceu avulsa a tudo, quebrada.

Ela simplesmente não se encaixava em nenhum círculo social, não se sentia completa em nenhum lugar desse mundo. Mesmo entre a sua família, as únicas pessoas que ela já amou nesse mundo, ela ainda não conseguia ser completamente ela mesma. Não conseguia se encaixar por completo.
Nem mesmo quando fazia arte, uma das poucas coisas que lhe traziam alegria, era capaz de preencher o enorme vazio que habitava dentro dela, fazer sumir a terrível solidão enraizada em sua alma.

Mas ali, naquela câmera escura e mórbida, ela finalmente era considerada parte de alguma coisa, semelhante a alguém.

Claro que ela se identificaria com algo obscuro, cruel e inexplicável. A sua natureza sempre foi estranha de qualquer maneira, algo mórbido e repleto de sombras e solidão. Ela agora achava que entendia o porquê.

Uma bruxa. Era isso que as mulheres de vermelho afirmavam que ela era. Uma chapéu vermelho, assim como elas se referiam a si mesmas. Parte do grupo de mulheres sanguinárias e vingativas que viviam na densa floresta de Storneville, sobrinha de uma bruxa poderosa.

Ela permitiu que o sentimento de pertencimento preenchesse o seu peito, diminuindo a desconfiança infiltrada em seus pensamentos, sem permitir que ele desaparecesse completamente.

Nada aquilo fazia sentido, nada do que lhe foi dito ou mostrado parecia algo confiável, sólido o suficiente para acreditar. Mas algo em seu coração quebrado queria crer nisso com todas as suas forças, com tudo de si.

O luto ainda era uma ferida aberta dentro de si, mas uma espécie de alívio parece ter sido implantado na sua alma. Como se o sentimento de pertencimento pudesse talvez preencher o grande vazio que habitava o seu peito, afastar a solidão e as sombras obsessoras.

E naquele momento, Emma sentiu como se o sol e o seu calor estivessem finalmente se mostrando para ela depois de uma longa, fria e pavorosa noite de terror.

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⏰ Última atualização: Jun 23 ⏰

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