1 - Ah! Nunca mais.

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WANDINHA


Ah! O aroma inconfundível de Nunca Mais: desespero e mentiras. Estar de volta era... Interessante. Confesso que minhas férias foram menos agitadas do que o meu último semestre escolar, onde fui caçada, amordaçada, quase morta (pelo menos duas vezes) e, o pior de tudo, QUASE permiti que meu coração perdesse seu ritmo perfeito: beirando a linha reta do desfibrilador.
Respiro fundo para poder enfrentar a despedida exagerada e desconfortavelmente calorosa de meu pai. Lurch, o membro – quase – Addams com as emoções mais controladas tira minha bagagem do automóvel. Quase consigo sorrir por saber o que trago em minhas malas: um kit novo para dissecação, dois explosivos e os diários... Os diários de minha mãe durante sua estadia em Nunca Mais. Artefatos que consegui com muito custo.

— Tem certeza que não quer que o papai a leve até o dormitório – sou esmagada em seus braços.

— Pela milionésima vez: Não! – consigo me soltar, mas meu pai me agarra de novo.

— Deixe ela, meu amor.

— Por favor ouça a mamãe antes que eu use uma de minhas facas em seus braços, papai.

Ele me solta, mesmo com relutância, porque sabe que sou capaz de coisas assim. "Coisa de Wandinha", como ele mesmo diz.
Mãozinha se despede de forma dramática de Feioso. Meu irmão puxou o sentimentalismo de nosso pai, ficou mais perto de mim do que eu acharia aceitável durante as férias, mas não o repreendi porque é divertido tortura-lo em meu tempo livre.

— Gostaria que voltasse para a escola comigo – ele mantém o olhar baixo e tenho vontade de arrancar cabeças por ver meu objeto pessoal de tortura com... medo. E não de mim.

— Deixei presentinhos na caixas de correio de alguns dos animais que o amedronta.

— Você é a melhor irmã de todas – ele abre um sorriso.

— Sou sua única irmã.

— Mesmo assim. Eu ainda escolheria você se tivesse essa opção.

Sinto meu estômago contrair.

— Acabe com eles, Feioso. Ou eu acabo com você.

Ele volta para o carro enquanto eu posso me despedir da minha imponente mãe. Somos parecida na demonstração de sentimentos (exceto com meu pai, óbvio). Ela me pede para fazer bom uso dos diários e eu fico surpresa por ela relevar que sabia do meu pequeno segredo.

— Não tem como esconder nada da mamãe Addams.

Ela argumenta.

— Apenas faça bom uso deles, creio que já sabe meu segredo mais sombrio, está na hora de conhecer minhas habilidades.

— Você fez perder toda a graça.

— Acredite quando digo que há muito para ver, eles o manterá interessada.

Espero o carro virar a esquina para poder finalmente respirar fundo. Ser uma Addams é cansativo as vezes.

 X

Estou quase terminando de arrumar minhas coisas e nada de Enid chegar. Mãozinha já sinalizou diversas vezes para que eu envie uma mensagem, mas isso já seria passar um limite muito alto. Sinto uma inquietação irritante por ver seu lado do quarto vazio, mas me concentro em guardar meus novos brinquedinhos.
"Ligue", mãozinha sinaliza.

— Não.

"Você está preocupada"

— Não seja ridículo. 

Mas eu estava.

"Mande pelo menos uma mensagem"

Solto o ar pesado e pego o aparelho, manter uma discussão com mãozinha não nos levaria a nada além de perda de tempo.
Estou começando a digitar qual o quarto e invadido pelo aroma enjoativo e doce que eu aprendi a conviver.

— EU ESTAVA COM TANTA SAUDADE – ela grita enquanto corre para me abraçar e não consigo ser rápida o bastante.

— Limite – tento me soltar.

— Já passamos dessa fase.

Enid me aperta tanto que sinto meus ossos estalarem. A transformação a deixou mais forte, disso eu tenho certeza.

— Ok, já está bom.

— Por que não está me abraçando de volta?

— Porque não fomos atacadas por um espírito maligno, um monstro assassino ou uma psicopata – me remexo e ela me solta – Quando eventos assim voltarem a acontecer talvez eu te abrace de volta.

— Credo.

— Mãozinha estava com saudades.

Ela estreita o olhar e eu me viro para a o meu armário.

— Eu também estava com saudades... mãozinha.

Ouço o tamborilar dos dedos frenéticos de mãozinha que corre até ela. Traíra.
Passamos o restante da manhã arrumando o quarto enquanto Enid contava animada sobre suas férias, dias de compras e de Ajax. Ela falou bem empolgada – mais dos que o normal – sobre as mensagens que eles trocaram, fora as ligações.
Tyler.
Era ridículo como ele invadia minha mente sem ser solicitado. Eu o odiava e precisava repetir isso. Mas ficava cada vez mais difícil não pensar nos momentos... interessantes que dividimos. Não achava possível que uma pessoa pudesse mentir tanto. Até lembrar que as pessoas são assim: mentirosas e cruéis. E não do jeito bom.

— Você está me ouvindo? – Enid fala irritada.

Mas antes que eu tivesse a chance de responder Bianca e Xavier entram no quarto, seguidos por Ajax. É fácil ver o brilho no olhar dele e de Enid quando se encontram.

— Vamos até Jericó, querem ir?

— Sim.

— Não.

A garota lobo e eu falamos juntas.

— Por favooor – ela insiste.

— Eu pago seu café – oferece Bianca.

— Hoje é lua cheia, gostaria que estivesse do meu lado.

Enid entrelaça o braço no meu e eu a sinto tremer. Ok eu faria isso.
A conversa no carro é bem calorosa. Xavier tenta puxar assunto comigo uma vez ou outra, mas não consigo manter uma conversa com mais de três palavras... minha cabeça estava divagando. Eu odeio divagar. Mantive o olhar fixo nas janelas e fingi contar as árvores que passavam rapidamente. Eu beberia ácido antes de admitir que seria difícil entrar na cafeteira depois de tudo. Mas minha mente é um lugar seguro, então:

Vai ser difícil não encontrar Tyler atrás do balcão.

Sinto um peso no peito ao ouvir minha voz interna pronunciar as palavras.
Enid parece sentir algo e discretamente aperta minha mão. A lanço um olhar tranquilizador – ou ameaçador, talvez.
E quando as portas da cafeteira se abrem lá está ele. Menos sorridente que o normal. Mas ainda sim é ele e meu coração me certifica disso quando parece querer saltar para fora. De raiva.
Muita, muita, muita raiva mesmo.

— O que você faz aqui?

— Café, milkshake, anoto pedidos.

Ele ergue as sobrancelhas e o tom de ironia em sua voz me dá vontade de arrancar seus olhos.

QUEM É O MONSTRO? - Wandinha e Tyler.Onde histórias criam vida. Descubra agora