eu não quero sofrer.

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se eu quero ser pura como Deus, preciso ser vazia como tal. o vaso é o espaço adentro e não a porcelana que o estrutura, a beleza pode estar em seu formato, seus desenhos ou até em suas rachaduras, mas sua essência realmente está lá dentro. Deus é uma grande sala oca, como o espaço dentro do violão onde a paleta se perde, as vezes fica empoeirado lá dentro mas isso não importa, simplesmente é um compartimento oco cuja inocência eu almejo.

eu me desapaixono na vida de propósito, me desapego dos pensamentos mundanos. eu me tornei uma armadura oca na infância mesmo, quando percebi que não tinha coragem de me matar na cozinha de casa então teria de viver ignorando aquela vontade sinistra.

eu não vivo, eu me arrasto. eu me quebro em pedaços como uma xícara de porcelana sendo usada continuamente. eu me quebro em pedaços porque não quero ficar na gaveta, atrás das xícaras de vidro.

eu ainda sofro porque tenho esperança, eu penso que posso confortar e apaziguar as pessoas, porque eu sou movida a culpa.

eu estou limpa ou estou suja.

para estar limpa, eu preciso me sujar primeiro.

o mundo me suja como sujam a Deus com suas próprias interpretações reduzidas à efígies e gesso. "seu corpo me machuca como o mundo machuca Deus", essa frase de sylvia plath é como um sussurro de luz no meio da escuridão quando deixei um garoto me destruir e chamar isso tudo de prazer.

eu tiro a culpa do meu corpo como tiro a poeira do chão da minha casa após uma sede inexplicável por limpeza, depois deito na minha cama e minha remuneração por isso é um mínimo conforto, que é seguido de tristeza, porque lembro que a poeira sempre voltará e eu terei de limpar tudo de novo.

isso é angústia.

às vezes me pergunto como søren kiekegaard se sentiria se descobrisse que a fé que o mantém são é na verdade uma obsessão estranha. eu não chamaria de "vontade de viver", mas uma obsessão injusta imposta no meu corpo antes de eu saber usá-lo. acaso, o significado de tudo seja isso, e esse seja para tudo desde as formigas aos átomos e dos átomos às estrelas.

eu não quero sofrer, mas qual outro desejo me satisfaria tanto quanto esse?

a inocência dos objetos ocos.Onde histórias criam vida. Descubra agora