O valor de um obrigado

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Era uma vez um oleiro.

Morava em Santa cruz, porque quase todas as pessoas das histórias de fadas moram em Santa cruz. O oleiro chamava-se Carlos, e trabalhava como um cão todos os dias, para ganhar

O suficiente para manter ele e sua avó vivos. Todos os dias, da manhã até a noite, Carlos fazia vasos, potes, todo tipo de utensílios, e vendia-os por preços irrisórios. Ou, porque tinha piedade e um coração burro, dava-os a quem precisava.

O dinheiro nunca era o bastante. Avizinhava-se o inverno, e Carlos não tinha lenha, não tinha comida guardada. Pensava em como manter sua avó aquecida. Era necessário trabalhar

mais, vender mais.

Certa manhã, acordou para descobrir que havia uma dezena de novos potes prontos, em cima da mesa. Eram trabalhos caprichosos, que ele poderia vender por um bom preço. Mas

não eram seus.

— Você tem a ajuda de alguma criatura magica — disse a avó de Carlos. — Temos um brownie em

casa. Ele vai trabalhar e ajudá-lo, mas você precisa deixar-lhe mingau e leite, todas as noites.

E nunca, nunca agradeça.

Carlos deixou uma tigela de mingau grosso e um caneco de leite gordo sobre a mesa

naquela noite. De manhã, o mingau e o leite tinham sumido, e uma dúzia de vasos, panelas e

outros produtos valiosos estava no seu lugar.

Carlos ficou feliz. Conseguiu vender o trabalho da criatura por bastante dinheiro, e seguiu

trabalhando de dia. A cada noite, deixava mais mingau e leite, e recebia mais trabalho.

Comprou lenha e comida.

Depois de três semanas, avistou o brownie.

Era um homenzinho pequeno e raquítico, com cerca de um metro de altura, pequenos

olhos de carvão e longos dedos ágeis. Metido em um traje marrom e portando uma gorro cor de terra. Olhava Carlos, quase sorridente, quase ansioso.

Carlos fora salvo da fome, e talvez da morte, pela criatura. Quis agradecer. Mas lembrou-se do conselho de sua avó, e ficou calado. O brownie se retirou.

Seguiu a rotina, trabalho de dia e trabalho de noite. E constantemente Carlos via o brownie, e queria agradecer-lhe, mas não podia. Seis meses depois, Carlos tinha dinheiro suficiente para

contratar ajudantes, expandir a casa e a oficina, comprar uma vaca. Roupas caras e quentes para

ele e sua avó, e segurança. Certa noite, avistou o brownie de novo, e pensou em como cortejava a

filha de um rico mercador. Ficou comovido, porque era tudo graças àquela criatura. E disse:

— Obrigado.

O brownie arregalou os olhinhos de carvão, rangeu os dentes e fechou os punhos diminutos.

Praguejou na língua das fadas, virou as costas e foi embora. Carlos nunca mais o viu.

— Você é um idiota, Carlos — disse-lhe a avó. — Você nunca deve agradecer a uma

fada. Elas sempre pagam suas dívidas, sempre. E sempre esperam algo em troca, quando dão

algo. Mas, quando você agradece a uma fada, está dizendo que a transação acabou, que acabou

o contrato. O nosso brownie foi procurar uma outra casa, de onde não o expulsem.

Carlos empobreceu de novo, sem a ajuda da fada. O inverno estava mais uma vez

próximo, e sua avó ficou doente. Ele não tinha como pagar um médico ou um curandeiro, e por

isso decidiu ir à terra das oliveiras, em busca de ajuda.

No primeiro dia de viagem, encontrou a Rainha Kaliska.

Ela não pareceu vê-lo, pois era grandiosa demais, imponente demais, bela demais. Mas

ele abordou-a:

— Quero algo para sobreviver ao inverno. Minha avó está doente, não temos lenha, nosso

brownie nos abandonou. Preciso de algo para me ajudar.

A Rainha notou-o, e riu para si mesma, com seus lábios sorrateiros e verdes.

— Aqui está, mortal — disse ela, estendendo um frasco transparente com um líquido

âmbar. — Pingue uma gota disso na lareira, e ela vai arder a noite toda. Pingue uma gota na tigela, e ela vai se encher de comida. Pingue uma gota no caneco, e ele vai transbordar de vinho.

— Obrigado.

Kaliska mudou de semblante: os cabelos mais escuros, a pele mais branca. O céu trovejou, a grama se eriçou. A transação acabara. A Rainha se afastou, cheia de ira real.

Com a poção da Rainha das Fadas, Carlos e sua avó sobreviveram ao inverno.

Na primavera, Carlos estava viajando, indo de uma aldeia a outra para vender seus potes, quando a estrada se fechou para um cavaleiro montado em um cavalo,o animal não tinha cabeça, mas chamas.. O homem parecia um índio de pele morena e cabelos também em chamas,apontou-lhe um arco. Não era homem, na verdade: era um caipóra, arauto da vingança da Rainha.

Carlos foi atingido pela flecha, e caiu para trás, gemendo. O índio preparou outro disparo.

— Obrigado — disse Carlos.

A transação acabara. O guerreiro abaixou o arco e cavalgou para longe.

No verão, Carlos aventurou-se na floresta, porque queria estocar lenha desde cedo. Mas, nem bem ele punha os pés sob as árvores, sentiu o chão lhe faltando, e estava pendurado. Um cipó voluntariosa prendia-lhe o pé, e logo outras agarravam-lhe braços e pernas, até

que ele não pudesse se mexer.

Surgiu Kaliska, a Rainha das criaturas mágicas.

— Você me ofendeu, mortal. Você insultou a Rainha. Mas agora vai pagar. Esta é minha vingança!

— Obrigado!

A Rainha abriu os olhos.

A transação acabara. Aquela era a vingança. A vingança acabara.

Carlos desceu da árvore.

Voltou para casa e, em vez de procurar ajuda das criaturas mágicas, naquele ano decidiu vender seus potes mais caro, e não presentear a mais ninguém.

Contos inacabados das terras das Oliveiras Onde histórias criam vida. Descubra agora