Prólogo

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- Devemos parar e achar um abrigo - pediu Noria quando a noite caiu na floresta ao redor do grupo. - Já escurece.

- A noite a assusta? - perguntou Sor Pawer Manner com um sorriso de deboche no rosto.

Noria não se deixou cair naquela armadilha. Era uma mulher velha, com mais de cinquenta anos, e estivera diante de cavaleiros mais prepotentes do que o jovem Vigilante.

- A noite é a hora dos lobos - respondeu. - Nada temos a fazer com a noite.

- Quais lobos? - questionou Manner. - Não vejo nenhum.

- Jeana os viu - disse Noria. - Se ela diz que os viu, eu acredito.

Jeana sabia que seria envolvida naquela disputa em algum momento. Desejava que tivesse sido antes de estarem cercados pelas árvores.

- Eu os vi quando passamos as Planícies Brancas - disse Jeana.

- Sou um dos Vigilantes, um Manner, não um homem qualquer - respondeu Pawer com a mão na bainha de sua espada. - Se a alcateia cometer a estupidez de cruzar conosco pela estrada, morrerão todos, e terei peles novas para presentear aos meus irmãos.

- Quando pequena minha mãe falou-me que coisas piores que lobos espreitam à noite - contou Jeana.

- Minha ama de leite falou a mesma coisa, e outras tantas maluquices - disse Pawer. - Nunca confie nas palavras que uma mulher diz enquanto tem as tetas mamadas. Nesses bosques encontrarão lobos, corujas e morcegos, nada mais que isso. Não tenha medo - ele foi galante à Jeana. - Eu protegerei-a com minha vida se for preciso.

Jeana não se levou por aquele gracejo como não se deixou levar por nenhum dos outros tantos que recebeu de Pawer durante os dias. Jeana não gostava dele. Tampouco Noria gostava.

- Cavalgamos há muito sem quase parar. Quatro manhãs e quatro noites - salientou Noria. - Não sou uma montadora, estou farta desta égua e seu balançar. Minhas pernas ardem de assaduras. Se precisam de mim para tentar salvar a mãe e o filho que ela tem no seu ventre, eu preciso descansar agora.

Sor Pawer Manner olhou para ela das sombras, com desdém.

- Uma estrada que eu percorreria em dois sóis. Demoramos tanto pela sua velhice que a prenha muito provavelmente estará morta quando alcançarmos os portões da Torre da Vigia - a voz dele ecoou grave na penumbra. - Chegaremos antes do amanhecer se mantermos o ritmo. Sem mais paradas. Siga meus cascos, ou fique para trás com os lobos.

Jeana viu o aperto em torno dos lábios enrugados de Noria, o desprazer de seus olhos estreitos escondidos pelo capuz de sua capa. Era uma senhora respeitada na Vila das Focas, onde vivia como parteira, enquanto mulher e quando ainda moça, e não estava acostumada a ser tratada com tamanha grosseria. Mas era mais do isso. Jeana conseguia ver na mulher mais velha que havia algo além do ego ferido. Era possível sentir no ar: uma tensão que percorria-lhe o corpo como o sopro outonal.

Jeana partilhava do desconforto da outra. Estava há dois anos aprendendo a ser parteira com Noria. Da sua primeira vez em um parto viu a vida que deveria salvar padecer diante de seus braços, e suas entranhas viraram água para jorrar de seus olhos. Agora já era quase uma veterana, tendo ajudado em partos mais de quarenta vezes, e nada mais era capaz de tirar-lhe o sono.

Até aquela viagem começar. As coisas estavam diferentes agora. Pararia para que Noria pudesse dormir, mas ela mesma não conseguiria. Não descansava desde que tinha partido do vilarejo, nem mesmo acompanhada da vigia do cavaleiro e da fogueira. Havia naquela escuridão longe de casa algo de afiado que lhe fazia eriçar todos os pelos do corpo. Cavalgavam há quatro dias a pedido do Senhor Comandante da Vigília em direção ao extremo sul do Sul, para o Racho, o mais longe que se podia ir no reino. Cada dia fora pior que o anterior. Aquele já era o pior de todos. O ar soprava por entre as copas como gritos de coisas vivas. Durante todo o dia Jeana teve uma sensação que era como se estivesse sendo vigiada por alguma coisa terrível e fria. Pensara estar louca, ou que fossem os lobos, mas Noria também sentira. Jeana nada mais desejava com tanto anseio quanto estar de volta em seu casebre na Vila das Focas, mas aquele não era um desejo que conseguiria realizar.

Os Agouros do OutonoOnde histórias criam vida. Descubra agora