Prólogo

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Inestimável leitor, 

Por acaso existe alguém entre nós que não seja amante das grandes histórias de amor? Tantas quais permeadas de paixão, lascívia, juras enamoradas, promessas de uma vida inteira e, por que não, doses de solidão?  Esta que vos fala com certeza é. Me lembro bem da primeira ocasião em que fui arrebatada pelos enlaces de um bom conto romântico. Que inusitada maneira foi.  Era ainda bem jovenzinha, perdida nos devaneios de uma criança muito desinteressada com os afazeres domésticos, mas deveras curiosa no campo da exploração ao que lhe era proibido. Vagava pelos imensos corredores do casarão de meus antepassados - o medo das possíveis assombrações que ali poderiam residir não fora capaz de deter meu instinto investigador, mesmo que por debaixo do vestido rendado as pernas miúdas tremessem ao ponto de ser complicado permanecer em pé - quando as grandes portas, feitas de madeira maciça, com fechaduras banhadas à prata, captaram meu olhar. As mãozinhas branquelas suavam quando empurrei uma das trancas, o coração martelando na boca - não se engane, inocente companheiro de relatos, esta menina não temia o que poderia haver do outro lado, mas sim antecipava a reprimenda que lhe seria dada pelo pai por adentrar um dos locais considerados "inapropriados" para moças da minha idade. A razão de tal inadequação nunca era, verdadeiramente, explicada. Os adultos apenas limitavam-se em repetir que "garotinhas comportadas deviam concentrar-se em permanecer no lugar que lhes era socialmente adequado, sem perambular pelos demais cômodos", quando suas paciências já haviam se esgotado, após eu questionar-lhes centenas de vezes a razão de não poder ir a um lugar dentro de minha própria residência. 

Dessa forma creio que não deva ser complicado imaginar quão grande fora meu espanto ao deparar com uma grande estante de livros por detrás das pesadas aberturas. Recordo que o ar parecia ter fugido de meus pulmões por alguns breves segundos e os batimentos tilintavam nos ouvidos. Que tesouro inexplorado era aquele? Como era possível que houvessem tantos exemplares reunidos em um único espaço e eu nunca os tivera visto? Caminhei com apreensão até a primeira prateleira, encostando apenas a ponta dos dedos nas lombadas distintas, umas de veludo, outras couro, duras ou maleáveis, seguindo a imensa fileira à frente. Os títulos eram, em sua maioria, desconhecidos, à parte de alguns escritos de Shakespeare e Santo Agostinho. Porém, não haveria como ser diferente, uma vez que, dada a predileção de minha família por uma criação conservadora,  às únicas obras que moçoilas como eu tinham acesso possuíam cunho religioso ou poético, por serem, supostamente, consideradas compatíveis com as expectativas de formação desejáveis para uma senhora recatada. Mamãe era o típico retrato da mulher devota ao seu lar e a fervorosa fé anglicanaPara ela, uma dama não poderia ser destituída de qualquer inteligência, pois assim não saberia como manejar as responsabilidades da casa, marido e filhos. Mas, também, não deveria ser uma "espertalhona", afinal, nenhum esposo gostaria de uma companheira que falasse aos montes ou perguntasse em demasia. A cônjuge perfeita, para seus parâmetros, preocupava-se, antes de tudo, em auxiliar o provedor da residência, seu esposo.  Preferencialmente calada, bem como submissa. 

Obviamente, nada que envolvesse a grandiosidade da aquisição de conhecimento que uma biblioteca poderia proporcionar apresentava-se, remotamente, prioritário para os adultos que, à época, cuidavam de minha educação.  Para os tais, ensinar-me a arte de manusear um piano ou como dar um nó específico durante o crochê parecia mais importante, considerando que, estes sim, eram os verdadeiros atributos requeridos para uma jovem que buscaria um bom partido para casar-se futuramente. Mal sabiam eles que núpcias seriam as últimas de minhas preocupações, mesmo após a maioridade. Nesse ínterim, deveras emocionada e temendo ser aquela a única oportunidade que teria de conseguir acesso a tantos livros, que ninguém me deixaria conhecer em outra situação, iniciei subtrações furtivas. Eu costumava apanhar três ou quatro obras por vez - era o que conseguia esconder por debaixo das abundantes camadas de saia dos vestidos que usava - sempre no período da manhã, quando as serviçais estavam muito ocupadas para se atentarem à criança que sumia de suas vistas. Tratava-se quase que de um ritual, finalizava o desjejum e pedia que me permitissem deixar à mesa, sob a justificativa de querer me preparar para receber os professores que chegariam pela tarde. Quando concediam, subia em disparada para o segundo andar, coletava o que queria, em seguida, escapulia para meus aposentos, agarrava o primeiro título e ocultava os demais sob dois travesseiros. Ali permanecia até ser chamada para o almoço. Antes de descer para a cozinha, certificava de não ser possível  visualizar qualquer prova do crime, afofando bem as cobertas e almofadas para tapar-lhes. Infelizmente, o momento de leitura, a partir de então, só era retomado quando todos já estavam em suas camas, no fim da noite. Finalizava todos os contos madrugada à dentro, com o auxilio de um pequeno lampião. Quando o sol raiava novamente, minha aventura se repetia, retornava o que já houvera lido e esgueirava-me com outros tantos, sempre pronta para descobrir um mundo desconhecido através dos relatos de magníficos escritores. 

O Duque e Seu Garoto [MewGulf]Onde histórias criam vida. Descubra agora