O caderno

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Me parece oportuno escrever e documentar minha velhice em um diário. Antônia me viu outro dia escrevendo em folhas soltas e se apressou em me trazer um caderno de capa preta. Eu sequer estava escrevendo algo com a intenção de documentar, eram apenas anotações sobre as novas doações de livros que haviam chegado na biblioteca. No dia seguinte quando acordei lá estava o caderno descansando sobre minha mesa com um laço tímido.

Entendi o recado e aqui estou à uma da manhã revezando entre encarar as páginas do caderno e o mar que se movimenta com calma do outro lado da rua. Há alguns meses aquele são joão me irrompe a mente como um susto. Seja enquanto coloco o pó de café na moka, ou no meio da noite atrapalhando meu sono tranquilo, me fazendo acordar com imagens vívidas dos corpos e das fogueiras. Hoje é um desses dias em que os barulhos dos tiros e dos fogos me parecem tão reais que me fizeram cobrir a cabeça com os braços.

Encontrei os antigos diários de Pólo em um baú que ficava no canto do quarto que chamo de biblioteca. Antônia sabia que estavam lá, quando questionei o baú em voz alta ela se apressou em me dizer que estava cheio de cadernos e livros velhos. Imaginei que fossem coisas da época em que eu lecionava na Universidade de Pernambuco. Eu não estava errado. Dentro do baú havia várias caixas com broches de gravatas, abotoaduras e crachás que usei ao longo dos anos. Livros e mais livros de páginas amareladas sobre direitos urbanos. Mas foi a pilha de cartas e cadernos de capas azuis que fez meu coração parar por alguns segundos, e se Deus finalmente tivesse decidido me levar naquele momento eu teria pedido para voltar.

Eu não precisaria jamais abrir aqueles cadernos para saber do que se tratavam, por anos observei Pólo escrevendo páginas e mais páginas. Espirrei e Antônia me entregou um pano. Despertei dos meus segundos de transe eterno. Limpe os livros, que tipo de amante da literatura você é? ela resmungava enquanto andava pela biblioteca tirando os livros das estantes. Impostor, aposto que nunca leu metade. Antônia sorria alegre, finalmente minha amiga estava sorrindo depois de tanto sofrimento. Se para isso era preciso me insultar eu não me importava nenhum pouco.

Passamos o dia ali naquele quartinho tirando centenas de livros das estantes, limpando e os colocando de volta. Na vitrola, algum vinil de bossa nova embalava a trilha sonora do momento. O tempo passou sem que eu me desse conta, Antônia deve ter se despedido em algum momento, a casa estava vazia, o barulho do mar agora substituída o som arranhado da vitrola.

E diante do baú eu estava mais uma vez. Recolhi os cadernos, agora limpos e sem muito vestígio de poeira e os coloquei em minha mesa no quarto. Por alguma razão a qual não consigo lembrar, os cadernos ficaram ali por dias. Um medo irracional tomou conta do meu corpo ao mesmo passo em que uma ansiedade de ler aquelas páginas me consumia de uma maneira quase mortal, mas eu não os conseguia abri-los. A simples ideia de passar os olhos por aquelas páginas fazia meu corpo estremecer e quando desandei a pensar que Antônia pudesse ter lido, afinal ela sabia o que estava dentro do baú, uma crise de pânico me acometeu. Com o coração acelerado me arrastei até o banheiro e coloquei dois comprimidos calmantes debaixo da língua. A lua nova apontava no céu, lembrei do conselho de um velho amigo. Que dizia que para despistar as crises incontroláveis bastava olhar para cima, encarar o céu era uma forma de se desprender a mente do corpo, e assim o fiz. Quando senti meu coração se acalmar dentro do peito, abandonei a varanda, peguei os cadernos no quarto, os joguei no lixo e me deitei.

Não consegui pregar o olho. Coloquei dois comprimidos debaixo da língua de novo. Dormi um sono intranquilo cheio de sonhos sobre as páginas dos cadernos. Durante a madrugada perdi o sono de vez. Pulei da cama, e Deus, não sei como fiz aquilo com tanta agilidade, um corpo de setenta e três anos pulando da cama com tanta ansiedade e pressa. De repente me senti com vinte anos de novo. Me senti jovem, viril, cheio de músculos. Rasguei a sacola preta em que os cadernos estavam envolvidos com pressa e deixei que meu corpo caísse ali no chão da cozinha. Me agarrei aos cadernos e foi como encontrar a saída para tantos sonhos ruins. Foi como se em um piscar de olhos eu os tivesse reencontrado, vivos ao meu lado através daquelas palavras, daqueles sentimentos, li e reli durante a noite inteira e foi assim que o caderno de capa azul desgastada se tornou minha leitura de cabeceira.

Mil prímulas AmarelasOnde histórias criam vida. Descubra agora