A mudança

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Três dias depois Antônia se mudou para o apartamento, foi um pedido meu, na verdade é algo que peço a ela há tempos, mas ela nunca aceitou. Estávamos no mercado empurrando o carrinho de compras, ela disse.
"Me mudo amanhã Z, vamos arrumar o quarto hoje".
"Já não era sem tempo."

respondi sem questionar, eu sabia que era o aniversário da morte da filha de Antônia e que era esse o motivo da decisão; Ela colocou duas garrafas de vinho branco no carrinho e não falamos mais nada sobre a mudança.

Já fazem mais de vinte anos que nos tornamos amigos. Feli, a filha de Antônia foi minha aluna. Geralmente não se conhece os pais dos alunos quando se é professor de universidade. Mas lá estava ela, vestindo preto, uma quinta de manhã me esperando do lado de fora da sala. Se Anto não tivesse falado comigo eu jamais a teria notado.

" Bom dia professor, sou a mãe de Feli diazzio, o senhor tem um minuto ?"

Foi só quando Antônia desatou a falar sobre a doença da filha que notei em seu rosto o cansaço e a dor de uma mãe em sofrimento.

Eu não lembrava da filha de Antônia em minhas aulas, enquanto ela falava fiz um esforço tremendo para lembrar as feições da garota mas não consegui. Ouvi atentamente uma mãe calma ou entorpecida pela dor discorrer sobre o câncer que corroía os órgãos de sua filha única.

O câncer de Feli havia sido descoberto tarde demais, o avanço da doença estava na fase três, no entanto a garota estava recebendo um tratamento para que a vida que lhe restava fosse o mais confortável o possível e para que a doença não evoluísse. Anto veio a mim para informar que a filha iria trancar a matrícula, mas não queria que a aluna se passasse por desleixada, na verdade esse havia sido um pedido de Feli. Ela queria e precisava que os professores soubessem o que estava acontecendo, não queria jamais parecer uma dessas alunas desinteressadas, pois adorava estudar e estava triste por não poder mais. Eu estava sendo o ultimo a receber tal informação.

Pedi imediatamente o número de Antô, a questionei sobre visitas. Mesmo sem lembrar dela sem conhecer, de alguma forma me conectei com Feli. Estudar era minha vida e eu sabia que se um dia não pudesse mais fazer minha morte estaria perto. Então uma vez por semana, geralmente nas quartas pela tarde, eu dirigia até o bairro dos aflitos onde Feli morava com a família e passava as matérias com ela. Era desconfortável, mesmo quando em dias piores da doença, ela me pedia que não fosse embora. Ensinar e falar sobre direitos urbanos com Feli era maravilhoso, falávamos sobre a ocupação dos espaços públicos e sobre como as construções nos morros eram perigosas, mas que não existia sequer o mínimo de interesse público para uma melhoria desses ambientes. A vida digna não existia para os pobres e os governantes gostam disto. De ter poder sobre essa segregação. Mas chegou um ponto em que não havia mais o que ser discutido, Feli me perguntou se poderíamos iniciar um clube do livro. Me tornei parte da família e do sofrimento de Feli tão rápido, e hoje consigo ver o quanto tudo que me uniu às pessoas à quem amei foi o sofrimento.

Eu, Anto, Betina, avó de Feli e Feli formamos então um clube do livro. Líamos romances cheios de bobagem de humor. Dia após dia assistimos Felicia morrer aos poucos, definhar na cama. Anto e Betina se esforçaram tanto em manter a jovem de vinte e quatro anos viva mesmo que morrendo.

A mãe e avó criaram um quadro semanal para contabilizar os vômitos e faziam disso uma festa, Feli adorava. Se divertia. As duas mulheres se esforçavam ao máximo para tornar a situação um pouco mais leve. Nos últimos dias todos sabíamos que Feli não chegaria à próxima semana.
Não saímos de casa para nada, o tempo inteiro estivemos com ela e passei a dormir no chão da cozinha. Descobrimos que eu e Betina fazíamos aniversário no mesmo dia e comemoramos os quatro.

Feli comeu uma fatia de bolo de maracujá e fez esforço para não vomitar. O câncer havia lhe tomado o corpo. Felicia Diazzio morreu na madrugada de sexta para sábado, A mãe e a avó estavam cada uma de um lado na cama. Eu segurava os pés de Feli enquanto lia baixinho A pedra do Reino. Ela abriu os olhos e olhando para Antônia murmurou "Estou cansada Mainha" " Feche os olhos e descanse, meu amor" E assim ela o fez, fechou os olhos e descansou para sempre.

Não houve como quebrar o laço que se estabeleceu entre mim e Antônia. A vi perder a filha e a mãe anos depois. Envelhecemos juntos. E agora moramos juntos. Anto não trouxe muita coisa. Se instalou no terceiro quarto. Sinto que agora ela vive o mesmo que eu. É maravilhoso acordar e ter alguém para tomar um café mesmo que em silêncio olhando o mar e a rua. A morte nos impôs uma solidão, mas agora não estavámos mais sozinhos.

Não toquei no diário por dias. Eu e Antônia estabelecemos uma rotina. Acordamos cedo,descíamos para o calçadão da praia e depois de uma caminhada animada uma água de côco bem gelada no quiosque de Elena marcava nossa chegada à praia do Pina. É bem verdade que tenho me cansado com essas caminhadas, mas são elas que nos tiram de casa e nos fazem ver que de algum modo nessa velhice ainda existe algum tipo de vida que valha pena ser vivida por nós dois. Em uma dessas nossas caminhadas Antônia me perguntou sobre os cadernos e eu soube que ela havia lido.

"Quando você vai me falar sobre eles?" Não me fiz de bobo, sabia do que ela estava falando, não havia necessidade de encerrar aquela conversa ou de criar um clima.

"Não há muito o que dizer Anto, estão todos mortos"
"Que bobagem, me conte sobre Pólo, sobre o jornal, sobre a cidade"

Fiquei em silêncio. Ela leu e agora eu estava com medo do que ela pudesse ter lido.

"Nós nos amava-mos eu fui embora, ele ficou. Ele morreu e eu fiquei vivo, é essa a história, nada de extraordinário"

"O que?!" Ela exclamou tão alto que um casal que estava caminhando ao nosso lado se assustou. "Vocês... Você tá me dizendo que é gay? Z? Você namorou seu amigo de infância?" Não contive a risada, Antônia estava visivelmente chocada e só então me dei conta de que ela não havia lido quase nada.

"Bom eu gosto de mulheres também" Retruquei sorrindo

"É melhor eu ter cuidado com o garanhão, uhhh"

Talvez Antônio realmente não soubesse sobre minha orientação sexual. Às vezes penso que ela quis se mostrar amistosa por não saber o que dizer. Mas no fundo acredito que ela tinha coisas mais importantes para pensar. A conversa sobre Pólo não foi muito mais para frente.

Naquele mesmo dia não li o diário, mas o tirei da cabeceira e coloquei ao meu lado na cama. Não queria relembrar Polo ou o quer que tivesse acontecido há mais de quarenta anos atrás em na maldita Ferreiros.

Em vão.

Todo o esforço que faço para esquecer me parece vão. Então que me venham as memórias, que me inundem a mente, que me afoguem. Eu não me importo mais.

Mil prímulas AmarelasOnde histórias criam vida. Descubra agora