População elusiva pt 2

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Não é que a sociedade não reconheça a existência do mal nas mulheres, até porque as mulheres já foram retratadas como coniventes e malévolas, verdadeiras mensageiras do apoca lipse, desde que Eva comeu a maça.

Mas nós parecemos preferir mulheres más como aquelas abrigadas apenas em nossas ficções. Elas podem atrair homens para o mar (sereias), enquadrada-los por assassinato (Ga- rota exemplar) ou sugar sua respiração em
um poema ("A Bela Dama Sem Piedade"); é quando elas entram na vida real e começam
a matar pessoas reais que nossa imaginação
falha.

Não podemos imaginar que elas fizeram, sabe
como é, de propósito. Normalmente, mulheres são vistas como seres unicamente capazes de
cometer homicídios reativos — homicídio em autodefesa, uma explosão de amor, um desequi-
líbrio de hormônios, um momento de histeria -,
e não homicídio instrumentais, que podem ser
maturados, calculados e executados a sangue- frio.

Não à toa temos a infame fala de Roy Hazelwood¹, agente do FBI, que afirmou em 1998: "Não existem assassinas em série".

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O que acontece quando as pessoas são confron- tadas com uma assassina em série? Quando as ideias de "sexo frágil" se quebram e ficamos os desconcertantes olhos de um mulher com san- gue seco sob as unhas? Primeiro, provavelmen- te daríamos uma checada para ver se ela é ou não gostosa. (Um estudo de 2015 apresentou grandes dificuldades para determinar quais das 64 assassinas em série da lista tinham uma "atra tividade acima da média".)

Isso ajuda a suavizar seus crimes — uma colher de açúcar etc. Hoje, nós lembramos da assassina Elizabeth Bathory como uma vampira sexy que se banhava no sangue de virgens, o que não é verdade, mas faz dela menos humana, mais mi- to — e, por sua vez, nos dá uma desculpa para fazer perguntas desconfortáveis como: se ho- mens supostamente deveriam ser os agresso- res, por que mulheres como Elizabeth existem?

Em geral, as pessoas se esforçam para ligar assassinas em série à luxúria, em qualquer situação, mesmo que seus crimes não tenham nada a ver com isso. Voltando no tempo, um en- saio de 1890 intitulado "Thigh About Female Cri- minals" [A verdade sobre mulheres criminosas]
apresenta uma boa definição, com maiúsculas e tudo: "Nativo ou estrangeiro, jovem ou velho,  bonito ou horrível, ela se planta com confiança no vantajoso terreno do sexo".

A mulher em questão não é gostosa? Queime-a na estaca! E dê a ela um apelido tolo como Vovó Sorriso, A Beldade do Inferno ou Annie Veneno sa. Em 2015, uma idosa russa foi filmada por câ
meras de sua melhor amiga, e a mídia não hesi- tou em batiza-lá de Vovó Lecter. Esses não são nomes calculados pada nos manter acordados à noite; eles reforçam a grande e abrangente pia- da que é a agressão feminina. (Eis a Annie Vene nosa. Ela nunca está completamente vestida sem uma ordem de restrição!)

Assim como apelidos, arquétipos podem ser ferramentas organizacionais úteis, mas muitas vezes acabam suprimindo ideias mais comple- xas a respeito da maldade e escuridão femini- nas. Por exemplo, a imagem da mulher como alguém que cuida e acalenta é adorável, evo- cando aspectos da própria Mãe Terra, mas a Mãe Terra também é uma implacável destrui- dora, cuja ira assola progressivamente a culpa
e a inocência de forma semelhante. Esse seu

lado, no entanto, é raramente masculinizada e violenta. Devido ao "migo da passividade "fe- minina", uma mulher que não internaliza
sua raiva é muitas vezes vista não apenas co- mó masculinizada, mas como, quase literal- mente, um homem. Pelo visto, é a única ma- neira de entendê-la.

Quando a Paris do século XVII sofreu com uma onda de mulheres envenenadoras, um jornalis- ta ponderou: "Deixando de considerá-las como outras quaisquer, elas logo são comparadas aos mais terríveis homens".

Vejam bem, eu entendo que é mais fácil engolir matanças em série quando os crimes são ameni zados por um  apelido, adoçados  pelo  sexo  ou categorizados por alguma arquétipo. As pesso as têm infinitos truques nas mangas para mi- nimizar a violência feminina: desumanizam assassinas em série, comparando-as com monstros, vampiros, feiticeiras e animais; erotizam-nas até que pareçam mais inofensi- vas (Bad Girls Do It!: An Encyclopaedia of Fema le Murderers e "Hot Female Murderers that You ’d Probably Go Home With" [Mulheres assassi nas gostosas que você provavelmente levaria para casa²); e até berran a cansativa fala de Ki pling³ — "A fêmea da espécie é mais mortal que o macho!" —, e então caem fora, satisfeitas de que a situação tenha sido suficientemente ana-
lisada. Eu entendi. O assassinato é assustador; quem quer reivindica-lo? Quem quer enten de-lo? Porém, no fim do dia, creio que haja algum ganho no reconhecimento da agressão feminina, mesmo quando é a algo doentio e distorcido.

Caso contrário, estamos vivendo em negação. E, apenas para deixar registrado, essa negação é exatamente o motivo de muitas avós simpáticas terem conseguido matar durante décadas sem levantar a mínima suspeita.

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Se existe uma palavra que eu usaria para descrever as mulheres neste livro (outra além de "credo"), seria "pressa". Vez ou outra me encontrei ofegante com uma relutante admiração pelo número de empregos que essas senhoras tiveram, a quantidade de maridos que enganaram, o número de vezes que engambe- laram as autoridades. Discordo de sua convic- ção estou a e da perturbada crença de que o assassinato era melhor caminho para se livrar de seus problemas e seguir em frente, mas reconheço suas jogadas doentias cujo intuito era melhorar suas condições. (Isso não é realmente aplicável às assassinas ultrarricas, sufocando em seu próprio poder.) Nietzsche tocou nesse ponto lá em 1887, quando escreveu: “ o homem desejará o esquecimento em lugar se não desejar nada”.

                 Podemos nos perguntar: "Por que mulheres matam?". Mas acho que também po- demos nos perguntar: "Por que alguém mata- ria?". Esse é um assunto para um livro mais longo e mais sóbrio do que este aqui. As pes- soas matam por variedade de razões: raiva, ganância, narcisismo maligno, uma pequena irritação. O assassinato é um enigma tão hor- rível porque é algo não natural (extinguir uma vida humana — é como estar brincando de Deus), e ainda assim tão previsível. Desde o

início dos tempos, nós dormimos, comemos, fazemos sexo e matamos uns aos outros (às vezes nessa ordem, fêmeas de louva-a-deus!).
É o que se aprende na primeira aula sobre humanidade. Você verá um monte de reações moralistas nos registros históricos apresenta-
dos neste livro, e eu acho isso bem divertido.

Oh, então ficamos surpresos com o fato de que as mulheres também são tanto herdeiras quan- to executoras de todo esse horror?

           Na introdução de Guerra e paz, Tolstói traz o caso de Darya Nikolayeyna Saltykova, uma assassina em série russa do século XVIII que aparecerá neste livro. “ Ao estudar cartas, diários e tradições [do tempo de Darya], não encontrei os horrores de tais selvagerias em maior medida do que os encontro agora ou em qualquer outro período”, escreve ele. "Naqueles tempos, as pessoas também amavam, inveja- vam, procuravam a verdade e a virtude, e fo- ram levadas pela paixão."

Embora cada mulher neste livro tenha sido moldada por seu tempero, é uma falácia pensar que seus crimes, “os horrores de tais selvage-
rias”, surgiram de alguma sopa sociocultural primitiva da qual nós, em nosso presente im- pecável, conseguimos evoluir. Claro, um dia eu espero que vivamos em uma cultura utópica onde todas as histórias de nossos antepassados transgressores serão gloriosamente queimadas, como a biblioteca de Alexandria, e faremos uma lavagem cerebral em nós mesmos para acreditar em nossa própria perfeição.

Mas, até lá, temos de encarar os fatos: existem, de fato, assassinas em série.

Essas damas assassinas eram inteligentes, mal-humoradas, coniventes, sedutoras, imprudentes, egoístas, delirantes e estavam dispostas a fazer o que se fosse necessário para ingressar no que elas viam como uma vida melhor. Foram implacáveis e inflexíveis. Estavam perdidas e confusas. Eram psicopatas e matadoras de crianças. Mas elas não eram lobos. Não eram vampiros. Não eram homens. Mais uma vez, a ficha mostra: elas eram horrivelmente, essencialmente, inescapavelmente humanas.

LADY KILLERS: assassinas em série Onde histórias criam vida. Descubra agora