Como Azeite E Água

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Sera tinha um ideal que regia a sua vida e que ditou a sua escolha de carreira: ninguém, por mais vil ou indiferente que seja, é insensível ao amor. Contudo, ao observar a interação das suas vítimas, o celestial começava a duvidar da sua visão do mundo.

Em teoria, a combinação que criara era perfeita: uma adolescente necessitava de absorver orgulho para sobreviver e a outra destilava-o em abundância. Porém, um imprevisto detalhe daquele arranjo deitava por terra todo o seu esforço.

— Gemma, vamos embora. Não há nada como cruzar caminhos com uma reles demónio para perder o apetite — anunciou uma voz condescendente, chamando a atenção de Sera para aquilo que se desenrolava à sua frente.

No corredor das refeições rápidas de um hipermercado nas proximidades da escola secundária, entre as embalagens de saladas e as caixas de salgadinhos, fermentava uma altercação inflamada. A adolescente que falara, mais alta e morena que as restantes, pousava uma embalagem de verduras no seu lugar no expositor. Hesitante, a amiga atrás de si fazia o mesmo.

— A sério, Amira? — inquiriu Gemma, insegura com a situação, atirando olhares à figura com o cabelo pintado de vermelho vivo a alguns passos de distância.

— Sim. Os outros paranormais ainda tolero. Agora uma demónio? Duas vezes em menos de 24 horas? Nem pensar. — Amira girou nos calcanhares, pronta a dar a volta e sair. — Tive de a suportar ontem, já foi o suficiente.

Kali, até então desinteressada, levantou o olhar para ver o cabelo negro da altiva Amira a abanar enquanto se afastava, seguida de perto por Gemma.

— Ei! — Quando Amira continuou a andar para longe, Kali aumentou o volume. — Ei!

A rapariga-dragão parou, olhando sobre o ombro com olhos que demoraram uns instantes a transformar as pupilas reptilianas nas banais esferas negras. Kali espiou Gemma, claramente humana, antes de fitar a outra paranormal.

— Oh, não te preocupes! Ela sabe que existimos há anos.

— Para te poder massajar o ego não só por quem és, mas também por aquilo que tu és, não é verdade? — cuspiu Kali, num tom de voz controlado para evitar dar espetáculo. — Se tens alguma coisa a dizer, di-lo na minha cara. Ou de dragão dourado só tens essa estúpida voz esganiçada que gostam de usar para dar um sermão aos demais?

As íris cinza da Amira traíram um tom rosado quando esta girou de novo, distribuindo o peso nas botas de salto alto separadas à largura dos ombros e erguendo o queixo.

— Os dragões dourados são venerados porque trazem prosperidade e boa fortuna. Mas não é como se uma criatura inferior como tu conseguisse entender. — Um dos cantos da boca de Amira elevou-se, presunçoso, quando esta se inclinou um nadinha para trás, cruzando os braços. — Afinal, há uma boa razão para não vos deixarem falar na assembleia. Até os cadáveres em decomposição erguidos pelo sangue dos necromantes são mais coerentes que esses vossos grunhidos!

Kali largou o almoço, oferecendo a atenção indisputada à sua oponente. Junto ao corpo, as mãos pálidas contraiam e relaxavam em espasmos quase ritmados.

— Oh, biscoito... A razão pela qual mais ninguém fala na assembleia, incluindo os demónios, é porque a família Ornalla está demasiado apaixonada pelo som da sua própria voz!

Cada município organiza uma assembleia local de paranormais todos os meses, onde os não-humanos se reúnem para resolver conflitos entre si ou com a raça humana, que desconhece a sua existência, na sua grande maioria. A última reunião tinha ocorrido na noite anterior e, como de costume, a família da Amira tinha discursado em longos e repetitivos monólogos na maior parte do tempo, mal dando voz às outras raças presentes no auditório. O pai da Amira, em especial, tinha enfatizado a necessidade de votar uma revelação das raças paranormais aos humanos, outra vez. A mera sugestão causou a revolta do anfiteatro, com as duas facções da questão a defender acirradamente o seu ponto de vista, quase acabando em violência.

O cenho da mais morena franziu-se, evidenciando o contorno de uma veia proeminente sobre a têmpora direita.

— Chama-me biscoito mais uma vez e nem todo o pecado do planeta somado será suficiente para te regenerares! — ameaçou, a voz demasiado alta e a forma reptiliana a deixar evidências de que estava a beirar a superfície nas suas feições .

Kali aproximou-se em passadas largas.

— Controla-te, biscoito. Lá porque defendes que devíamos ir a público, não quer dizer que o devemos fazer — sibilou entre dentes, olhando para o resto do corredor com apreensão. Não se via ninguém, mas era possível ouvir os risos dos colegas de escola atrás das estantes e as conversas animadas das funcionárias ao virar da esquina. — Muito menos aqui!

Os resquícios bestiais desapareceram do corpo da Amira tão depressa quanto surgiram. Gemma engoliu em seco com a tensão. Kali manteve a sua posição, mesmo quando a mais alta deu um passo em frente, aproximando os seus corpos o suficiente para quase poderem sentir o bater acelerado do coração uma da outra através do contacto.

— E se eu não quiser? O que é que vais fazer?

A filha de demónio susteve o olhar desafiador da outra por longos segundos, até o seu telemóvel tocar. Sabendo que era o irmão a ligar-lhe, Kali recuou e pescou o aparelho do bolso.

— Isso! Aproveita a deixa para fugires como a cobarde impotente e insignificante que és!

Kali fulminou-a ao atender, mas a humana cortou o campo de visão das duas paranormais.

— Já chega, Amira. O intervalo do almoço está quase no fim e se chegarmos atrasadas mais uma vez, lá se vai o registo perfeito do bachillerato*.

A dragão deixou-se convencer a contragosto e saiu do hipermercado primeiro, de mãos a abanar. Kali pegou no que Unai lhe pediu ao telefone, numa caixa de salgados para si e dirigiu-se à caixa, envergonhada com o que tinha acabado de ocorrer.

Aquele comportamento não lhe era normal, tal como o bater desenfreado do coração e o suor. Elas viviam no mesmo bairro e andavam na mesma escola e raramente se viam. Porque é que, de repente, os seus encontros tinham ficado mais frequentes e tempestivos?

1039 palavras

Nota: em Espanha, onde se passa o conto, o bachillerato é o nível de escolaridade entre o secundário obrigatório e o universitário

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