Novo Emprego

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Sera não cabia em si de felicidade.

Ao contrário dos outros celestiais da sua idade, ele sempre teve o sonho de se tornar um Cúpido. E agora, graças às reformas antecipadas no Gabinete das Paixões e à impopularidade da profissão, o jovem podia finalmente dedicar-se a encher o mundo de amor sem mesmo se ter formado na Academia.

Ele quase que poderia apostar que os amigos se iriam arrepender de ter escolhido ingressar noutros Gabinetes para serem Virtudes, Querubins ou mesmo Anjos da Guarda. Felizmente para si, não havia ninguém interessado em ficar com o seu dinheiro. Não só a divisão dos Cúpidos era das únicas sem quaisquer prospetivas de promoção, como o amor se tinha tornado um sentimento fantasioso e antiquado, tanto para humanos como para paranormais, tendo sido substituído pela moda da promiscuidade.

Contudo, o ingénuo e romântico Sera não trocaria o seu emprego de sonho por nada de qualquer um dos mundos. Mesmo que fosse ficar afogado em trabalho por falta de recursos celestes no Gabinete, especialmente com o aproximar do dia de São Valentim. Mesmo sem o diploma que deveria preencher a moldura vazia na parede do quarto. Mesmo sem autorização para utilizar o símbolo mais característico da sua profissão.

O jovem celestial apertou a fisga que o Gabinete lhe atribuiu — sem o diploma de formação de Cúpido da Academia ou outro equivalente, ele não estava habilitado a utilizar uma ferramenta tão sofisticada como o arco e as flechas — antes de abrir as asas e ganhar altitude. Tinha de começar a unir casais compatíveis e bem sucedidos para passar de estagiário contratado em cima do joelho para Cúpido de pleno direito. E nada melhor para provar o seu valor, e a veracidade do seu ideal, do que começar por encontrar um par romântico para um demónio. 

Devido à polaridade oposta das suas essências, os Cúpidos têm dificuldade em ouvir a ressonância que o âmago dos demónios faz com outras criaturas, tornando difícil o seu emparelhamento. Mas Sera estava confiante das suas capacidades. Afinal, ele tinha o ouvido mais dotado de toda a sua — diminuta — turma.

O primeiro demónio com que se cruzou vivia entre os humanos. Sem olhar a quem, Sera retirou um dos dois Projéteis que se materializaram na bolsa que trazia à cintura e disparou, marcando a primeira metade do seu par. Depois, esvoaçou pelas redondezas de ouvidos atentos, protegido pela invisibilidade que a fisga de trabalho lhe concedia. Enquanto a tivesse junto ao corpo, nem a mais sensível das criaturas o conseguiria detetar.

O trabalho de um Cúpido é muito subjetivo. Encontrar duas essências que tenham uma boa ressonância depende da sensibilidade de cada um e nem sempre aquilo que soa bem a um Cúpido se transforma numa relação forte e duradoura. Porém, quanto mais harmoniosa é a ressonância, maiores as hipóteses do casal se manter fiel ao seu âmago com o tempo e, assim, permanecer tão apaixonado como quando foi atingido com os Projéteis da Atração.

Não muito longe, Sera encontrou aquilo que julgou ser o par ideal da sua primeira vítima e, por isso, disparou o segundo Projétil, ligando as duas criaturas por uma atração até então inexistente. 

Satisfeito consigo próprio, o jovem voltou ao Gabinete. Quando o casal cedesse à ligação do Cúpido, a sua nova missão poderia começar. E, com um pouco de sorte, a relação que ele incentivou duraria muito tempo, aumentando o seu prestígio e valendo-lhe uma rápida promoção depois de um reconhecimento do seu mérito. Já podia imaginar a cara de felicidade dos pais ao receber a distinção dos seus superiores e a sua vontade de lhes esfregar na cara que tinha provado as suas preocupações com o seu futuro infundadas.

Porém, os dias passaram e mais nenhum par de Projéteis se materializou na sua bolsa, sinalizando o  término da sua primeira missão. Algo de muito errado se tinha passado e Sera precisava de descobrir o que era o quanto antes. O dia 14 de Fevereiro estava próximo e se não cumprisse com as cotas mínimas estabelecidas pelo Gabinete nesta altura do ano para agilizar trabalho, seria despedido ainda antes de conseguir o cargo definitivo.

Sera revisitou as suas vítimas para entender o problema. E bastou um par de horas num encontro fruto do acaso entre as duas adolescentes para entender aquilo que estava a interferir com a ligação que criara — o orgulho.

É que na sua incompetência em distinguir as raças de demónios pelo timbre único dos seus âmagos, tinha deixado que os ouvidos o levassem a juntar uma descendente de um Lúcifer, um demónio que se alimenta de orgulho, e uma dragão dourado, a mais arrogante e orgulhosa das raças sobrenaturais.

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Imiscíveis (⚢) ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora