Somos Todos Frágeis

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Sera tinha decidido dar o último empurrão ao par de adolescentes. 

A atração criada pelos Projéteis fazia com que gravitassem em torno uma da outra. Porém, tudo o resto as fazia discutir, mesmo os detalhes mais insignificantes, impossibilitando a conclusão da missão do jovem celestial.

Por sorte, a oportunidade de Sera surgiu uns dias depois, numa despensa que uma das funcionárias da escola que as jovens frequentavam tinha deixado aberta sem querer. Kali atravessava o corredor quando a mão invisível do Cúpido abriu a porta do cubículo e derrubou vassouras, sabonetes e o monte de papel higiénico, atraindo a atenção da jovem.

Kali recolheu o que lhe rolou para os pés e entrou na penumbra depois de olhar em volta. Tinha de se despachar se queria chegar a horas à aula de preparação para as provas de acesso à Universidade. Contudo, não bastou endireitar os objetos que pareciam ter caído no chão por magia, já que podia ouvir gemidos de dor do fundo da despensa apinhada.

O feixe de luz do seu telemóvel incidiu no vulto à sua frente, revelando Amira. Os olhos que dispararam na direção da intrusa estavam rosados, com as pupilas fendidas, e a sua pele de cappuccino tinha uma aura dourada a cobri-la, lembrando escamas. O seu corpo, afastado do chão pelos quatro apoios, tremia.

— Vou buscar a tua humana — disse Kali, dando meia volta para sair do espaço quente e apertado.

— Não! — gemeu Amira, num guincho, fazendo a outra estacar na porta. — Nem te atrevas...

Uma nova onda de dor varreu o seu corpo. Na mente ficaram as frases que os seus lábios jamais diriam: Eu não quero que ela me veja assim. Não quero que se assuste e tenha nojo.

Kali olhou sobre o ombro antes de pegar num balde e sair, fechando a porta. Amira cerrou os dentes, tentando focar-se na respiração. Quando voltou a tomar consciência do espaço à sua volta, Kali já se tinha fechado na despensa consigo outra vez e estava a retirar a camisa negra que tinha sobre uma camisola de alças clara, molhando-a na água do balde.

Algo no seu interior estalou com a visão e a rapariga-dragão perdeu as estribeiras.

— Desaparece! Eu não pedi a tua ajuda, demónio — arquejou, escorregando desajeitadamente para se sentar de frente para Kali, com as costas para uma prateleira de químicos de limpeza.

— Mas eu estou a oferecê-la. Para bem do segredo paranormal.

Amira estalou a língua em desagrado.

— Eu sei que és uma Lúcifer... — grunhiu. — Vieste para te alimentar de mim outra vez? Queres provar um orgulho despedaçado porque te fartaste do sabor dos mais inflamados?

Kali espremeu a camisa, atirando-a para cima de Amira. A dragão estava tão quente naquele momento que o tecido soltou vapor quando a atingiu, contribuindo para a condensação que se formava no teto e nas paredes.

— Só sou metade Lúcifer. O meu pai era humano.

Amira retirou a parte do tecido que lhe tinha caído sobre o rosto, olhando para a demónio através das pestanas compridas e dos pontos negros na vista. A outra suspirou ao reconhecer a confusão nos olhos rosados, mesmo estando semicerrados.

— Eu não me alimento de orgulho. O orgulho dos outros é que alimenta o meu — admitiu, cruzando os braços.

— Como assim?

— Eu torno-me orgulhosa na presença de alguém orgulhoso. Como tu, por exemplo. 

Amira sorveu ar, fechando os olhos para aguentar mais uma vaga de desconforto. A aura dourada sobre a pele foi percorrida por uma oscilação, intensificando o padrão de escamas na semiobscuridade que a lanterna do telemóvel apontada à porta criava.

— Estás a mudar as escamas, não estás?

A dragão, um pouco fora de si, assentiu com veemência. Todos os da sua espécie passavam pela muda na adolescência, para a sua forma bestial perder o tamanho de cria e adquirir a forma adulta definitiva. Amira, infelizmente, não era a mais precoce da ninhada, tendo acabado por sofrer com a manifestação imprevisível do fenómeno aos 17 anos, em pleno dia de escola, como se não estivesse à espera do momento.

Kali olhou os próprios pés, incomodada com o desconforto da outra. Deveria distraí-la? 

— Os paranormais olham-me com desconfiança, como fazem com todos os demónios, porque lhes custa admitir que tenham defeitos dos quais outros se possam alimentar — confidenciou, forçando a voz. 

Amira olhou-a de novo, surpresa. Kali sorriu com constrangimento, aproximando-se para recolher a camisa.

— Os outros demónios consideram-me humana, ainda que a minha família me diga que não é verdade. Mas eles são todos demónios puros. A minha mãe, o meu padrasto, o meu irmão mais novo. Todos — sussurrou num sufoco. As suas mãos mergulharam o tecido na água, antes de o içar e espremer com vigor.— Nenhum deles me compreende. E não há amor suficiente que eles me possam dar que apague esta sensação de desamparo, de não pertencer a lado nenhum.

Atravessando a despensa, Kali devolveu a camisa molhada com água fria ao corpo de Amira que, com um gemido e um remexer do corpo, denunciou o seu efeito apaziguador.

— Os humanos vêm-me como humana porque nos vêm a todos como humanos — acrescentou, olhando o fundo dos olhos rosados por instantes antes de se afastar. — Se os paranormais se mostrarem ao mundo, os demónios vão receber a aversão de todas as raças, mas vão continuar a ser aceites entre os seus. No entanto, eu vou continuar a ser uma mestiça, demasiado humana para os demónios, demasiado demónio para todos os outros.

Sera, que pairava invisível sobre elas, sentiu o momento em que os novos Projéteis se materializaram na sua bolsa. Aquilo porque tinha esperado dias a fio tinha finalmente acontecido: Kali e Amira tinham tido um vislumbre da essência uma da outra, dos seus verdadeiros "eu", e ganho interesse neles. 

Era isso a base de qualquer relação, incluindo uma amorosa: a curiosidade sobre o âmago de outra criatura. Um Cúpido oferecia a um par a oportunidade das suas almas encontrarem outra com que fossem compatíveis. E o que acontecia depois era uma incógnita, em nada influenciada pela afinidade que o Cúpido potenciou com os Projéteis da Atração.

As jovens fitaram-se em silêncio e Sera deitou a mão à bolsa. Suspirando de alívio ao sentir as formas familiares, Sera dirigiu uma última olhadela ao possível casal e saiu da despensa, afastando-se do recinto escolar. Tinha de encontrar novos pares para cumprir as suas cotas para Fevereiro.

Geralmente, a cedência à ligação de um Cúpido acontecia rapidamente, uma vez que se baseava apenas no interesse genuíno pelo outro. Mas as suas primeiras vítimas tinham sido um desafio. Ainda que Kali tivesse visto a verdadeira Amira no momento em que o feixe do telemóvel a iluminou, a dragão tinha demorado a baixar as suas defesas para ver a meio-demónio por aquilo que realmente era e não pela imagem que pintava na sua cabeça.

O celestial só esperava ter feito um bom primeiro trabalho e que as duas continuassem a explorar o seu interesse, apaixonando-se e encontrando felicidade, aceitação e compreensão uma na outra. De preferência, por muito tempo.

E, já agora, que as próximas vítimas fossem mais fáceis, ou bem que poderia dizer adeus à sua profissão de sonho.

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Imiscíveis (⚢) ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora